O
aparecimento do chamado Direito
Sancionatório do Ambiente, vocacionado para o combate das agressões
ambientais, é um fenómeno muito recente. Só há cerca de três décadas é que se
começou a suscitar o problema da criminalização de condutas nefastas para o
ambiente, daqui nascendo o Direito Penal do Ambiente e o Direito Administrativo
Sancionatório ou Contraordenacional do Ambiente[1].
O facto de a Constituição da República
Portuguesa[2]
instituir o ambiente como bem jurídico e de incluir a sua protecção no conjunto
de tarefas do Estado enunciadas no artigo 9º não determina, por si só, a
necessidade de construção de um sistema de sancionamento diverso do civil, maxime penal. Nem o artigo 66º, nem o
artigo 52º da Lei Fundamental portuguesa, prevêem, à semelhança da norma da sua
congénere espanhola (cfr. o artigo 45, nº 3), um indirizzo dirigido ao legislador ordinário no sentido de criar
tipos penais ecológicos. O artigo 66º, nº 1, da CRP versa sobre as bases de
deveres de protecção do ambiente que estão a cargo de entidades singulares e
colectivas, mas não indica quaisquer sanções. Já o artigo 52º, nº 2, alínea a),
da CRP fala em “prevenção, cessação e
perseguição judicial” dos infractores das normas jusambientais, mas sem
esclarecer sobre a natureza dessa perseguição. Para melhor compreensão, cumpre
referir que, enquanto bem jurídico impessoal, apatrimonial e sem vítima, o
ambiente começou por ser encarado como um fraco candidato à tutela penal. Ainda
assim, a pouco e pouco, ele foi-se impondo como grandeza social, metaindividual
e transgeracional, circunstância que acabou por justificar a opção pela tutela
penal. Esta, todavia, sendo novidade, restringe-se aos casos mais graves[3].
De facto, o princípio da interferência mínima – que resulta da articulação
entre o princípio da proporcionalidade ínsito nos artigos 18º, números 2 e 3, e
29º da CRP – reserva a tipicidade penal para situações de ofensas manifestamente
gravosas do ponto de vista social, as quais são mais facilmente identificáveis
nos casos de prejuízos pessoais e patrimoniais[4].
Precisamente por este motivo, o ambiente não pode contar apenas com a tutela
sancionatória penal, surgindo a intervenção administrativa autorizativa como
premente na regulação dos comportamentos neste domínio. A Administração deve,
assim, ter ao seu dispor mecanismos de enforcement
das prescrições não cumpridas[5].
Não obstante a Constituição não impor,
expressamente, a criação de sanções, a impunidade dos agentes de danos
ecológicos afigura-se inconcebível no contexto de prevenção para que ela
aponta, e que a Lei de Bases do Ambiente[6]
concretiza, nos artigos 46º e 47º. O valor colectivo do bem ambiente torna inevitável o
estabelecimento de uma associação entre as vertentes reparatória e repressiva
que exprima um juízo de censura social, o qual pode não chegar à privação da
liberdade, mas deve, pelo menos, atingir o patamar da sanção administrativa[7].
O fundamento da tutela contraordenacional ambiental e, em concreto, da Lei nº 50/2006
– Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais -, não radica na Lei Fundamental,
antes encontra os seus alicerces no artigo 47º da LBA[8].
As vertentes penal e contraordenacional não se
auto-excluem, tendo o legislador português optado por ambas. De uma banda,
criou crimes ecológicos, na revisão do Código Penal de 1995 (artigos 278º, 279º
e 281º), aos quais se juntaram, em 2007, o tipo descrito no artigo 274º, e, em
2011, os crimes de transferência de resíduos e descarga de substâncias lesivas
da camada de ozono, introduzidos pelos números 1 e 2 do artigo 279º-A. Como
afirma o Professor PAULO DE SOUSA MENDES,
algumas boas razões terá tido o legislador para se lançar na senda da tutela
penal do ambiente, ao passar a integrar, no elenco dos crimes previstos no
Código Penal, também infracções contra o ambiente, que nem sequer constavam de
legislação penal avulsa, mas tão-só do direito de mera ordenação social. As
únicas razões aduzidas nas Actas da Comissão revisora foram o clamor social existente neste domínio e
o trata-se de matéria cuja dignidade
penal já não se contesta, razões essas que o Professor crê que careceriam
de alguma demonstração, e que, porventura sendo válidas, seriam sempre
insuficientes para caucionar a opção criminalizadora, salvo se o intuito
legislativo tivesse sido somente o de calar o clamor social[9].
De outra banda, no âmbito dos regimes sectoriais, o legislador sempre reservou
um dos últimos capítulos ou títulos dos diplomas à vertente repressiva, sob a
forma de contraordenações[10].
Cumpre, então, questionar: qual
a relação entre os dois tipos de tutela?
A tutela penal do ambiente repercute-se
na actividade administrativa, assim como a tutela administrativa do ambiente
interfere na Justiça Penal, solicitando a sua ingerência para se poder
concretizar. Tradicionalmente, no modelo francês, a utilização da tutela penal
era encarada como reforço das políticas da Administração: as sanções penais
serviam para garantir que as ordens e os regulamentos eram respeitados pelos
cidadãos. A tutela penal visava, neste sentido, a protecção do valor da
obediência, pelo que as infracções merecedoras de sanções penais consubstanciavam
crimes de desobediência. Este modelo é criticável, na medida em que postula uma
fusão entre os poderes executivo e judicial e uma inversão das suas funções – a
acessoriedade da Justiça Penal transforma-a no braço direito da Administração,
conferindo-lhe meras funções executivas relativamente às políticas tuteladas.
Soma-se a circunstância de os critérios penais não se adequarem bem aos valores
prosseguidos pelas políticas ambientais – as regras sobre a culpa, orientadas
para a compreensão da pessoa, independentemente da danosidade do acto, não são
susceptíveis de satisfazer os desígnios de prevenção de danos ambientais e de
promoção da sua reparação[11].
Com a descriminalização de largos
sectores do Direito Penal Administrativo e a criação de um Direito de Mera
Ordenação Social, segundo o modelo germânico, emerge um sistema de quase
completa subtracção ao Direito Penal e às autoridades judiciárias da tutela
jurídica do ambiente. Após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 433/82, diploma
responsável pela instituição do Direito de Mera Ordenação Social, o nosso país
adoptou um sistema em que incumbe às autoridades administrativas aplicar
coimas, apenas intervindo os tribunais na fase de recurso. Paralelamente,
procedeu-se a uma descrição das condutas ilícitas que prescinde da causalidade
quanto aos danos e assenta na violação de prescrições das autoridades. Também
este modelo se demonstra reprovável, por dois factores principais. Por um lado,
porque se a cominação de pena ou de coima for o único critério de distinção entre
os ilícitos penal e de mera ordenação social, haverá condutas de imediata
ressonância ética apreciadas à luz de critérios estritamente técnicos. Por
outro lado, porque se a severidade das coimas igualar ou ultrapassar a das
multas penais, a previsão de contraordenações será um meio expedito de retirar
ao arguido a plenitude das garantias de defesa do Processo Penal[12].
Tem, pois, de ser outro o modo de
relacionamento entre a Justiça Penal e a actividade administrativa em matéria
de ambiente.
Na óptica da Professora MARIA FERNANDA PALMA, ao Direito
Administrativo deve ser relegado um papel subsidiário. As prescrições da
Administração apenas serão elementos a tomar em conta, como factos ou
declarações, nos juízos penais. Assim, uma autorização para desenvolver uma
actividade poluidora, baseada na apreciação incorrecta, pela Administração, da
danosidade de uma indústria, não impedirá a que os agentes que actuam
dolosamente sejam responsabilizados – a autorização incorrecta só funcionaria,
eventualmente, como causa de isenção de responsabilidade. O Direito Penal só
não interviria quando, apesar de ter sido violada uma ordem ou regulamento da
autoridade administrativa, se não divisasse a concreta danosidade da conduta
típica. Note-se que tal visão não promove a subordinação da autoridade
administrativa à Justiça Penal: à Administração competirá definir os índices
técnicos que condicionam o exercício das actividades potencialmente lesivas de
bens ambientais, mas tais índices não podem coarctar a autonomia do juízo penal
atinente à causalidade da conduta e à actuação dolosa ou negligente do agente
do crime[13].
A favor de uma tutela sancionatória
preferencial pela via penal podem ser invocados três argumentos. Desde logo, a
importância simbólica da existência de crimes ambientais, que confere à defesa
do ambiente uma maior dignidade jurídica,
a par de atribuir ao Direito Penal uma função de pedagogia social. De seguida, a maior intensidade da tutela
ambiental, dado que esta tutela constitui a reacção mais vigorosa da ordem
jurídica contra comportamentos atentatórios do ambiente, podendo cominar em
penas privativas da liberdade. Por último, a salvaguarda das garantias do
processo penal, desde a presunção de
inocência até à realização de um justo
julgamento (artigos 27º a 32º da CRP)[14].
Contudo, esta forma de tutela não escapa
a alguns reparos. Com efeito, o Direito Penal afigura-se inadequado para a
tutela do ambiente, pois prossegue, sobretudo, a repressão de comportamentos
anti-jurídicos graves, ao passo que o Direito do Ambiente se funda
essencialmente num princípio de prevenção. No Direito Penal, a imputação de
responsabilidades é rigorosamente individual, enquanto que, no domínio do
ilícito ambiental, existem múltiplas situações danosas provocadas pela actuação
de pessoas colectivas. Há ainda um perigo de descaracterização e de
subalternização do Direito Penal, que se deve ao facto de a maior parte dos
crimes ambientais decorrerem da desobediência às prescrições de entidades
administrativas, e também um elevado grau de ineficácia do sistema
sancionatório penal, tendo em conta a dificuldade prática em apanhar e condenar os infractores[15].
Em oposição, o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA defende uma
tutela sancionatória do ambiente realizada preferencialmente através da via
administrativa. Esta parece ser também a opção do ordenamento jurídico
português, contanto que a maior parte dos delitos ambientais corresponde a
contraordenações, e o elenco de crimes ambientais é bastante reduzido. Foi
mesmo considerada decisão histórica a
condenação (em pena suspensa), pelo Tribunal de Portimão, de um empresário por
danos a fauna e flora prioritárias de rede Natura 2000, na Ria do Alvor, para
implantação de um projecto turístico (cfr. os jornais Público, de 17 de Fevereiro de 2012, e Expresso, de 18 de Fevereiro de 2012) [16].
Atente-se que a preferência pela via administrativa não obsta a que normas
isoladas pareçam apontam em sentido diverso. É o que ocorre, por exemplo, com o
artigo 47º, nº 2, da LBA, nos termos do qual “se a mesma conduta constituir simultaneamente crime e contraordenação,
será o infractor sempre punido a título de crime, sem prejuízo das sanções
acessórias previstas para a contraordenação” [17].
A tutela administrativa apresenta três
vantagens indubitáveis. Em primeiro lugar, uma maior celeridade e eficácia na
punição do infractor ambiental, em virtude da simplicidade do procedimento
administrativo, quando comparado com o processo judicial, permitindo a
prontidão da resposta punitiva ao delito cometido. Em segundo lugar, a
responsabilização não apenas dos indivíduos mas igualmente das pessoas
colectivas, alargando o universo dos sujeitos a quem pode ser imputado um
comportamento delitual, e, desta feita, possibilitando o aligeiramento da
apreciação do nexo de causalidade em matéria de ambiente. Em terceiro lugar, a
salvaguarda da autonomia do Direito Penal, que não necessita de estar mais
subalternizado às estatuições das autoridades administrativas, o que contribui
para manter a pureza do tipo legal
dos crimes e da dogmática penalística[18].
De todo o modo, o Professor admite que
podem ser apontados alguns inconvenientes a esta tutela. São eles: a diminuição
das garantias de defesa dos particulares, ainda que esteja sempre assegurada a
possibilidade de intervenção dos tribunais em sede de recurso; a tendência para
a banalização das actuações delituais
em matéria de ambiente, que ficam, grosso modo, remetidas para o universo das
sanções de natureza pecuniária, e são vistas como uma realidade de relevância
menor; e a tendência para a transformação da sanção pecuniária num simples custo da actividade económica poluente,
que pode tornar lucrativo um delito
ambiental mediante uma simples operação contabilística de deve e haver[19].
Chegando a conclusão idêntica à
supramencionada, a Professora CARLA
AMADO GOMES sustenta que, a nível sancionatório, ambas as vias se revelam
necessárias para assegurar quer a prevenção geral e especial, quer a repressão
das infracções ao ambiente, e devem ser entendidas como complementares: às mais
graves deverá corresponder a tutela penal e às menos graves a
contraordenacional, sendo certo que a primeira terá sempre como pressuposto um
dano ecológico, mas a segunda não necessariamente. A complementaridade entre as
duas vias implica, por seu turno, coerência nas molduras penais. À primeira
vista, tal coerência é impossível, uma vez que se trata de duas modalidades de
penalização que envolvem diferentes instrumentos: coima e pena de prisão. No
entanto, como a prisão pode ser remível por multa (cfr. o artigo 278º, nº 2, do
Código Penal: crime de dano contra a natureza, com dolo = 240 dias de multa x o
valor máximo: 500,00 euros/dia), há que compatibilizar os valores, sob pena de
o mesmo facto ser mais severamente punido no plano contraordenacional do que no
penal. A Professor reclama ainda coerência no que toca à possibilidade de
substituição de coimas por dias de trabalho. Se essa possibilidade é admitida
no Direito mais agressivo, no que concerne às multas (cfr. o artigo 48º, nº 1
do Código Penal), a requerimento do condenado, por maioria de razão, o deveria
ser no âmbito do contraordenacional ambiental, dada a vertente pedagógica que
reveste[20].
Acresce uma terceira via, sugerida por HASSEMER.
Este autor, depois de considerar a tutela criminal como um mero Direito Penal simbólico, acaba por
propor a criação de um novo ramo do Direito, que seria fruto da reunião de
todas as franjas dos outros ramos de direito que possuem uma relação directa
com o direito ambiental, designadamente, dos direitos penal, fiscal, económico,
dos ilícitos civis, das contravenções, da polícia, do planeamento do
território, da protecção da natureza, das autarquias[21].
Tudo ponderado, são de excluir as
perspectivas meramente exclusivistas de tutela sancionatória do ambiente,
devendo antes ser combinadas, de modo equilibrado, as sanções penais e as
sanções administrativas. De maneira exemplar, o ordenamento jurídico português
combina os dois tipos de tutela, o que permite conjugar as vantagens e obviar
aos inconvenientes dos modelos exclusivistas, e, acima de tudo, fomentar uma
reacção sancionatória plena, adequada e efectiva contra comportamentos
delituosos que ponham em causa o ambiente[22].
Bibliografia
-
GOMES, Carla Amado, “As contra-ordenações ambientais no quadro da Lei 50/2006, de 29 de
Agosto: Considerações gerais e observações tópicas”, in Estudos em homenagem a Miguel Galvão Teles, Coimbra, 2012
-
GOMES, Carla Amado, “Introdução ao Direito do Ambiente”, 2º Edição, AAFDL, Lisboa, 2014
-
MENDES, Paulo de Sousa, “Vale a pena o Direito Penal do Ambiente?”,
AAFDL, Lisboa, 2000
-
PALMA, Maria Fernanda, “Direito Penal do Ambiente – Uma Primeira
Abordagem”, in Separata de Direito do
ambiente, INA, 1994
-
SILVA, Vasco Pereira da, “Verde Cor de Direito, Lições de Direito do
Ambiente”, Almedina, 2005
Por: Sofia Isabel Pires Chaves
Aluna
nº 21006
[1] SILVA, Vasco Pereira
da, “Verde Cor de Direito, Lições de
Direito do Ambiente”, Almedina, 2005, pág. 275
[3] GOMES, Carla Amado, “As contra-ordenações ambientais no quadro da
Lei 50/2006, de 29 de Agosto: Considerações gerais e observações tópicas”, in Estudos em homenagem a
Miguel Galvão Teles, Coimbra, 2012, pág. 457
[4] GOMES, Carla Amado, “Introdução ao Direito do Ambiente”, 2º
Edição, AAFDL, Lisboa, 2014, pág. 208
[5] GOMES, Carla Amado, “As contra-ordenações ambientais no quadro da
Lei 50/2006, de 29 de Agosto: Considerações gerais e observações tópicas”, in Estudos em homenagem a
Miguel Galvão Teles, Coimbra, 2012, pág. 459
[7] GOMES, Carla Amado, “As contra-ordenações ambientais no quadro da
Lei 50/2006, de 29 de Agosto: Considerações gerais e observações tópicas”, in Estudos em homenagem a
Miguel Galvão Teles, Coimbra, 2012, pág. 459
[9] MENDES, Paulo de
Sousa, “Vale a pena o Direito Penal do
Ambiente?”, AAFDL, Lisboa, 2000, págs. 36 e 37
[10] GOMES, Carla Amado, “Introdução ao Direito do Ambiente”, 2º
Edição, AAFDL, Lisboa, 2014, pág. 210
[11] PALMA, Maria Fernanda,
“Direito Penal do Ambiente – Uma Primeira
Abordagem”, in Separata de Direito do
ambiente, INA, 1994, págs. 431 e 432
[14] SILVA, Vasco Pereira
da, “Verde Cor de Direito, Lições de
Direito do Ambiente”, Almedina, 2005, pág. 277
[16] GOMES, Carla Amado, “Introdução ao Direito do Ambiente”, 2º
Edição, AAFDL, Lisboa, 2014, pág. 211
[17] SILVA, Vasco Pereira
da, “Verde Cor de Direito, Lições de
Direito do Ambiente”, Almedina, 2005, pág. 281
[20] GOMES, Carla Amado, “As contra-ordenações ambientais no quadro da
Lei 50/2006, de 29 de Agosto: Considerações gerais e observações tópicas”, in Estudos em homenagem a
Miguel Galvão Teles, Coimbra, 2012, págs. 461 e 462
[21] SILVA, Vasco Pereira
da, “Verde Cor de Direito, Lições de
Direito do Ambiente”, Almedina, 2005, pág. 280
Visto.
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