domingo, 18 de maio de 2014

A (in)Constitucionalidade do direito a poluir ?


Problemática do tema
            No presente trabalho, cabe discutir sobre a admissibilidade da criação deste mercado de comércio de emissões poluentes em face das normas constitucionais portuguesas. Poder-se-ia perguntar qual a relevância desta discussão, mas analisando mais atentamente a questão, percebemos que, uma vez estando em causa transacções de títulos jurídicos que conferem a possibilidade de poluir em determinadas quantidades, será tal mercado admissível em face da Lei Fundamental?
            Procuraremos apontar e ponderar os valores em presença tentando concluir no sentido da admissibilidade ou inadmissibilidade do mercado de emissões poluentes em face da nossa Lei Fundamental.
            A Constituição da República Portuguesa consagra o ambiente como um valor de dimensão constitucional. Esta consagração é feita de diversas formas, veja-se a consagração do ambiente enquanto direito, enquanto dever e, também, enquanto tarefa fundamental do Estado.
            Ora, se por um lado, a nossa Lei Fundamental vem erigir o Ambiente a valor estruturante do nosso ordenamento jurídico, por outro lado o mercado de comércio de emissões poluentes vem reconhecer um “direito a poluir”.
            Parece resultar de certa forma incongruente a situação relatada e, também, contrária aos valores constitucionais consagrados.

Valores em presença
            Mas se é verdade que o Ambiente é, entre nós, um valor estruturante de dimensão constitucional, também é verdade que podemos encontrar, entre nós, acolhimento constitucional de forma a sustentar a admissibilidade do mercado de emissões poluentes. Tiago Antunes aponta como valores constitucionais susceptíveis de fundamentar a criação deste mercado o ambiente enquanto valor constitucional e a liberdade de iniciativa económica, maxime, a liberdade de empresa.
Apesar de, num primeiro momento, parecer que o próprio ambiente depõe no sentido da inadmissibilidade constitucional de um mecanismo que reconhece um direito a poluir, o que é certo é que, o comércio de emissões poluentes funciona enquanto instrumento de combate à poluição. Isto porque o mercado de emissões poluentes, não obstante da sua vertente económica, não descura o seu objectivo primordial de combate à poluição, maxime, através do seu sistema de tectos máximos de emissão, o que permite controlar o limite máximo de emissões a nível global.
Se por um lado, o ambiente enquanto valor próprio parece sustentar a admissibilidade da figura do comércio de emissões poluentes, também não deixa de sustentá-lo o valor constitucional da liberdade de iniciativa económica privada, ou seja, a ideia de que os agentes económicos levam a cabo os seus empreendimentos de forma autónoma, sem os ditames impostos pelo Estado. Esta liberdade de iniciativa económica privada, concretiza-se, ainda, na liberdade de empresa, que, também, parece sustentar a admissibilidade de existência de indústrias poluentes (art.61º CRP).
            Apurados os valores em presença e, identificados aqueles que sustentam a admissibilidade constitucional desta figura em face do bem jurídico Ambiente, conclui-se que, prima facie, nenhum valor deve ser postergado em face do outro. Há, então que procurar e analisar detalhadamente soluções de compatibilização que permitam harmonizar os valores conflituantes[1].
            Quanto à liberdade de iniciativa económica privada, consagrada no art. 61º/1 CRP, constitui um direito fundamental de caracterização e concretização duvidosa. Isto porque, apesar de prevista no Título III, relativo aos direitos económicos, sociais e culturais, é um direito de liberdade[2].
            O art. 61º/1 CRP afirma que “a iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral”. Dir-se-ia que do preceito resulta que a liberdade de iniciativa económica não constitui em si um valor absoluto. Mas isto não só resulta do preceito como da própria ideia de direitos fundamentais como princípios e da sua, consequente, reserva geral imanente de ponderação.
            Como escreve Tiago Antunes, a consagração do direito fundamental de livre iniciativa económica resulta vaga. A concretização do que cabe no âmbito da norma constitucional em causa, carece de densificação por parte do legislador ordinário.
            E não é mais do que isto que faz o legislador ordinário ao estabelecer o regime do mercado de emissões poluentes. Vem, então, desta forma, conformar este direito fundamental de livre iniciativa económica, maxime, o direito de liberdade de empresa.
            A questão passa, no entanto, a ser mais complexa devido à necessidade de compatibilizar a conformação deste direito à livre iniciativa económica com os outros valores constitucionais em presença, concretamente aqueles que dizem respeito à protecção do ambiente.
            Abordando agora o valor constitucional que se encontra do outro lado da barricada, ou seja, o Ambiente, diríamos, em traços largos, que resulta claramente uma enorme preocupação de tutela do ambiente por parte da nossa Lei Fundamental[3].
            Uma das manifestações do pioneirismo da Constituição da República Portuguesa, no âmbito da tutela do ambiente, encontra-se na consagração da multiplicidade de modalidades de protecção jurídica. Consagra-se, não só, uma tutela objectiva do ambiente, bem como, uma tutela subjectiva do ambiente[4][5].
            Atendendo a esta tutela constitucional multidimensional, resulta do art.9º d) e e) CRP, a tarefa fundamental do Estado de defesa e valorização do Ambiente.
            Então, pergunta-se, se a instituição de um mercado de comércio de emissão poluentes se afigura compatível com esta imposição constante do art. 9º da Lei Fundamental.
            Apesar de a criação deste tipo de mecanismos reconhecer um “direito a poluir”, a verdade é que, através da implementação deste tipo de regimes se está a levar a cabo o mandado constitucional de protecção do ambiente, através do combate à poluição. Portanto, não se afiguram quaisquer problemas de admissibilidade constitucional do mercado de emissões em face do art. 9 CRP.
            Como escreve o jus-ambientalista Tiago Antunes, é ao nível do direito fundamental ao ambiente que se suscitam maiores reservas quanto à conformidade constitucional do comércio de licenças poluentes. O autor formula uma série de questões, nomeadamente, a de saber se existe, de facto, um verdadeiro “direito de poluir”, se estamos diante de uma situação de conflito de direitos e, se concluirmos num sentido afirmativo, como resolvê-lo.
            Quanto à primeira pergunta, a resposta será, inevitavelmente, negativa. Lógicamente não se pode falar de um direito constitucional de poluir a se. Isto, deve-se, essencialmente, à valoração negativa que a nossa Lei Fundamental atribui à poluição. Nesta medida, parece afastar-se a existência, entre nós, de um direito com este conteúdo e, consequentemente, a possibilidade de estarmos diante de um conflito de direitos. Se é certo que a emissão de susbtâncias poluentes, não se pode fundar neste suposto direito de poluir, ele ainda pode encontrar consagração, como vimos supra, no princípio da livre iniciativa económica, pois esta implica, invariavelmente, a emissão, ainda que reduzida, de substâncias poluentes. Ora, se o conflito de direitos não se verifica propriamente entre um “direito a poluir” e o direito ao ambiente, acaba por se verificar entre o direito ao ambiente e o direito de livre iniciativa económica, permitindo este último, este tipo de emissões poluentes.
            Não sendo nenhum destes valores um valor em si mesmo absoluto, e tendo ambos de ser posteriormente densificados pelo legislador ordinário, autores como Tiago Antunes, preferem falar num “modelo de convivência pacífica”, uma vez que o conflito de direitos fundamentais acaba por ser evitado através desta mediação do legislador infra-constitucional.
            Cabe perguntar, então, por onde passa esta articulação entre estes dois direitos. Ela é conseguida através do ónus da detenção, por parte do sujeito que detém a indústria poluidora, de títulos de emissão poluentes, em número equivalente ao total dos gases que pretende emitir. Desta forma, permite-se o exercício do direito de liberdade de indústria, conforme melhor se adeque aos seus interesses económicos, no entanto, comina-se um ónus de aquisição destes títulos de emissão. Parece, desta forma, conseguir-se uma compatibilização entre ambos os valores, na medida em que, se belisca em pequena medida a liberdade de iniciativa económica e se consegue alcançar um objectivo de tutela do ambiente, na medida em que, se assegura a fixação e o cumprimento de tectos máximos globais de emissões. Nas palavras de Tiago Antunes, esta solução mostra que o ambiente em si não constitui um valor absoluto, havendo que tolerar, em certa medida, a poluição. Mais se acrescenta: não é o regime do comércio de emissões que vem permitir ab initio esta permissão para poluir, uma vez que, anteriormente à implementação do regime, estávamos sujeitos à poluição, conseguindo-se agora a fixação de valores globais máximos de emissões.
            Tendo o direito ao ambiente uma tutela multidimensional no seio da nossa ordem jurídico-constitucional, há ainda que atentar sobre se o comércio de emissões poluentes se afigura admissível em face do dever fundamental de respeitar o ambiente, previsto no art.66º/1 CRP.
            Este dever constitui uma figura que acresce não só à tarefa do Estado de preservação do ambiente (art.9º e) CRP), como também ao direito a um ambiente sadio (art.66º/1 CRP). Quando se fala aqui em dever fundamental, não se está a referir um dever do estado, dever esse já consagrado no art.9º e) CRP, mas sim de um dever por parte dos particulares. Trata-se aqui não de um dever correlativo de um direito, mas sim de um dever proprio sensu.
            Tratando-se de um dever fundamental, a vinculação ao mesmo dos particulares, adoptando a tese dos deveres de protecção, só se processa através da mediação do legislador ou, em casos de défice, através do juiz. Nesta medida, não há uma vinculação directa com base na norma constitucional. As limitações de emissão poluentes, bem como as respectivas sanções a aplicar a quem ultrapassa estes limites, entre muitos outros exemplos, podem, no fundo, constituir estas leis concretizadoras do quantum deste dever fundamental de preservação do ambiente.
            Chegados aqui, cabe interrogar sobre se há ou não violação deste dever fundamental, uma vez que o comércio de emissões poluentes, permite que alguns industriais, mediante a aquisição de títulos de emissão, se isentem deste dever de respeitar o ambiente. Nas palavras de Tiago Antunes, será que não se está a permitir que possa ser “comprada” a isenção de respeitar um dever fundamental pondo-se, consequentemente, em causa o princípio constitucional da universalidade (art.12º CRP), uma vez que só quem não possua meios para adquirir a sua isenção, ficará vinculado ao respeito pelo dever fundamental de preservação do ambiente?
            Poder-se-iam sustentar aqui duas posições. Ora, por um lado, poder-se-ia argumentar no sentido da insconstitucionalidade da implementação deste regime, uma vez que constituiria uma violação do princípio constitucional da universalidade, pois permitir-se-ia uma isenção de alguns particulares quanto a este dever fundamental. Noutra perspectiva, seguida por autores como Tiago Antunes, não se deveria olhar para este mecanismo do comércio de licenças de emissões poluentes como uma exclusão do dever fundamental de respeitar o ambiente, mas sim como uma forma alternativa de cumprimento desse mesmo dever. Considera o jus-ambientalista que a possibilidade de adquirir títulos de emissão, apesar de permitir a criação de alguma poluição, funciona como um modo de a controlar.
            É, também, possível demonstrar que a introdução deste regime do comércio de emissões contribui mais no sentido de um efectivo cumprimento deste dever fundamental de respeitar o ambiente, do que aconteceria caso o mesmo não existisse. E isto porque, a partir do momento em que surge este regime, passa a haver um controlo mais eficaz dos níveis da poluição, uma vez que para poluir há a necessidade de incorrer préviamente em custos, o que acaba por dissuadir a que os industriais poluam mais do que o estritamente necessário.

            Conclusão
            Face à argumentação exposta, nomeadamente à confrontação do regime de comércio de emissões poluentes em face da tutela constitucional multidimensional que é conferida ao ambiente, concluímos pela admissibilidade deste regime. Apesar de, num primeiro momento, a tese da não admissibilidade ter uma maior adesão emocional, ponderados todos os argumentos em presença, a instituição deste regime consegue-se compatibilizar com o disposto na Constituição em matéria de ambiente.






[1] A procura deste tipo de soluções não pode ser feita sob o manto de um ecocentrismo ou antropocentrismo radical. Como reconhece TIAGO ANTUNES, “O comércio de Emissões Poluentes à luz da Constituição da República Portuguesa”, pp. 72 e ss., as pré-compreensões de quem procura indagar sobre formas de articulação destes valores conflituantes não deve ser contaminada com as concepções intrincadas em cada um de nós. No entanto, se é certo que este exercício não pode ser contaminado por tais concepções pessoais, não podemos deixar de considerar falacioso que essas mesmas concepções não irão incidir no caminho a percorrer. Cabe, então aqui, se nos é permitido, tomar posição nesta “querela” entre antropocentrismo e ecocentrismo. Da leitura que fazemos do ensinamento do jus-ambientalista TIAGO ANTUNES, parece-nos que o autor perfilha uma concepção antropocentrista mitigada. Reconhecendo que a protecção ambiental não pode ser feita à custa do sacrifício de todos os outros valores, considerando que este deve ser compatibilizado com os outros valores e necessidades em presença. No nosso modesto entender, se é certo que a defesa do ambiente não deve ser feita à custa de todos os outros valores envolventes, nem deve ser tido como um valor absoluto, já não nos se afigura tão adequado colocar o bem jurídico ambiente no mesmo “nível hierárquico” que o desenvolvimento económico. Sabemos que, não encontramos um apoio constitucional para partirmos desta prevalência, muito por causa da reserva imanente de ponderação que circunda os direitos fundamentais. No entanto, apesar da elementariedade deste postulado, não podemos deixar de partir da seguinte premissa: sem um Ambiente sadio não há crescimento económico-social.
[2] Sobre discussão sobre o tipo de direito aqui em causa, bem como sobre a susceptibilidade de constituir um direito análogo aos direitos de liberdade e sobre a necessidade de concretização pelo legislador ordinário vide a profunda exposição de TIAGO ANTUNES em “O comércio…”, onde são elencadas as várias posições doutrinais. Para não nos desviarmos do tema, cabe dizer apenas que seguimos aqui a concepção perfilhada por REIS NOVAIS, considerando que os direitos fundamentais devem ser vistos como um todo e, nessa medida, contêm dentro de si elementos caracterizadores de direitos de liberdade e de direitos sociais, pelo que, a distinção e a aplicação de pretensos regimes privilegiados tem um resultado inútil.
[3] Sobre a protecção constitucional do ambiente ao nível do Direito Comparado vide TIAGO ANTUNES “ O comércio…”, pp. 90 e ss.
[4] Sobre a consagração de uma tutela multidimensional do ambiente na CRP vide entre outros TIAGO ANTUNES “ O comércio…”, pp. 94 e ss., CARLA AMADO GOMES “Introdução ao Direito do Ambiente” e VASCO PEREIRA DA SILVA “Verde cor de Direito”, pp. 18 e ss
[5] Sobre a natureza jurídica do direito fundamental ao ambiente enquanto direito subjectivo ou meramente como interesse difuso, vide as diferentes construções de CARLA AMADO GOMES “Introdução..”, defendendo a existência de um interesse difuso; VASCO PEREIRA DA SILVA “Verde…” pp.84 e ss., no sentido da existência de um verdadeiro direito subjectivo; TIAGO ANTUNES “O comércio…” pp.111 e ss, no sentido de uma construção mista, cujo critério distintivo se deveria situar na teoria do âmbito de protecção da norma.


Bibliografia
CARLA AMADO GOMES, “Introdução ao Direito do Ambiente”, AAFDL, 2ª Edição, 2014;
JORGE REIS NOVAIS, “Direitos Sociais – Teoria jurídica dos direitos sociais enquanto Direitos Fundamentais”, Coimbra Editora, 1ª Edição 2010;
TIAGO ANTUNES, “O comércio de Emissões Poluentes à luz da Constituição da República Portuguesa”, AAFDL;
VASCO PEREIRA DA SILVA, “Verde cor de direito” Lições de Direito do Ambiente, Almedina, 2002.

João Camilo nº20865

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