sábado, 17 de maio de 2014

"Dano? Qual dano?" - A Responsabilidade Civil por Danos Ecológicos - Da Reparação do Dano através da Restauração Natural

Introdução

Neste segundo post, trago-vos um tema que me é muito querido proveniente do mundo civilista: o instituto da responsabilidade civil. Tendo em conta que a nossa disciplina jurídica se reporta, em concreto, ao ambiente, não poderíamos deixar de empreender uma tentativa de compatibilização deste mesmo instituto com o mesmo. Como tal iremos analisar o instituto da responsabilidade civil ambiental, nomeadamente a responsabilidade civil por danos ecológicos, reportando-nos maioritariamente à reparação do dano através da restauração natural.
Dividimos este nosso comentário em sete tópicos principais, a saber: começámos por diferenciar o dano ambiental do dano ecológico, explicando em que consiste um e outro. Após esta distinção, tentámos sumariar as várias formas de reparação do dano ecológico, nomeadamente a reparação in natura e a suas modalidades (restauração ecológica e compensação ecológica) e fizemos uma breve referência à compensação indemnizatória. Por último, procedemos a uma breve análise do regime da responsabilidade civil por danos ecológicos no seio do regime jurídico da responsabilidade civil por danos ambientais, constante do Decreto-lei 147/2008, de 29 de Julho.

            O Dano Ambiental e o Dano Ecológico

Antes de mais, parece-nos da maior importância começar por distinguir os conceitos de dano ambiental (também designado na Doutrina por dano tradicional) e o dano ecológico. Segundo o Professor Gomes Canotilho, entende-se por danos ambientais os danos provocados a bens jurídicos concretos através de emissões particulares ou através de um conjunto de emissões emanadas de um conjunto de fontes emissoras. Já a Dra. Heloísa Oliveira define os danos ambientais como aqueles que são provocados a pessoas e bens por força de danos a recursos naturais. Quanto aos danos ecológicos, a Professora Carla Amado Gomes refere que são os danos causados à integridade de um bem ambiental natural. A Dra. Heloísa Oliveira define os mesmos como uma lesão causada a um recurso natural, susceptível de causar uma afectação significativa do equilíbrio do bem jurídico ambiente, isto é do património natural, enquanto conjunto dos recursos bióticos e abióticos, e a sua interacção. Por último, o Professor Gomes Canotilho proclama que os danos ecológicos são as lesões intensas causadas ao sistema ecológico natural sem que tenham sido violados direitos individuais.
Estando definido o dano ecológico (dano causado à integridade de um bem ambiental natural, adoptando a acepção da Professora Carla Amado Gomes), passemos agora a explicar as duas formas de reparação (ou indemnização em sentido amplo) existentes:
1.      Reparação in natura
2.      Indemnização em dinheiro

Formas de Reparação do Dano Ecológico:

1 - A Reparação in Natura e as suas Modalidades

Quanto à reparação in natura/restituição natural (ou o mesmo é dizer “restitutio in integrum”, na formula latina) podemos afirmar que esta consiste no restabelecimento do ambiente ao seu estado primitivo, recuperando os bens lesados na íntegra, sempre que o mesmo seja possível, ou seja, a restituição natural tem como finalidade a reconstituição fáctica da situação actual hipotética. Não se trata de reconstituir a situação tal como esta existia anteriormente à prática do facto. O lesante tem sim a obrigatoriedade de reposição da situação como se não tivesse havido lesão, o que em termos práticos pode levar a resultados diferentes. Vejamos o seguinte exemplo: imaginemos um caso em que o facto lesivo e o consequente dano a uma espécie vegetal protegida se dão no ano de 2012, sendo que a sua reparação só tem lugar em 2014. Caso adoptemos a posição da reposição da situação actual hipotética, esta levaria a que se tivesse de reconstituir a situação em que a espécie estaria em 2014 caso não tivesse ocorrido o facto lesivo, tendo sempre que ser tido em conta a degradação a que, por factores exteriores, a espécie estava sujeita. Por outro lado e, caso adoptemos a posição em que a reparação natural correspondesse à reposição da situação anterior à prática do facto lesivo, o lesante estaria obrigado a reconstituir a situação de 2012. In casu, a segunda solução poderia ser ambientalmente mais favorável e aquela que deveria ser adoptada, isto, se a evolução do estado da espécie vegetal protegida implicasse elevada complexidade e imprevisibilidade, por hipótese.
Dentro da modalidade da reparação in natura temos duas formas de restauração, tendo em consideração a distinção entre o elemento natural em concreto afectado e a sua função ecológica (traduzindo-se esta na interacção e interdependência dos ecossistemas) a saber:
1.      Restauração ecológica
2.      Compensação ecológica

A Restauração Ecológica e a Compensação Ecológica

Em relação à restauração ecológica, esta consiste na recuperação do elemento natural que em concreto foi afectado. A reintegração dos bens ambientais lesados é fundamental e prioritária, pelo que se deverá ter em conta a sua capacidade autorregenerativa, o factor temporal da mesma e, prioritariamente, o local afectado. Já a compensação consiste na criação, expansão ou de alguma forma no aumento da capacidade funcional de outros elementos naturais. É de frisar que só no caso da restauração natural se demonstrar impossível, é que se deverá recorrer a esta outra forma de reparação, a compensação. A compensação ecológica pode ser feita através da substituição dos bens lesados por outros similares, de preferência dentro do perímetro afectado, ou em área confinante, de modo a beneficiar o ambiente e a comunidade atingida pelo dano. Procura-se a aproximação do “status quo ante”, que no fundo, não é mais do que adaptar uma nova realidade à situação que era tida como ideal. Em suma, o recurso à compensação requer que estejam preenchidos dois requisitos:
1.      O dano ambiental seja irreparável
2.      O património natural deverá permanecer inalterado, quer qualitativamente quer quantitativamente, ou seja, as medidas de compensação terão que se harmonizar com o bem degradado
A viabilização, desta forma de reparação, só é possível mediante um elevado estudo técnico e científico, do conhecimento exacto do estado inicial do meio ambiente danificado, conseguida através de uma pesquisa profunda realizada antes do dano se ter verificado. Indispensável é, também, dispor de critérios capazes de determinar o grau de recomposição do património natural degradado, assim como, efectuar uma previsão segura que possa prever os efeitos nefastos num tempo futuro num paralelismo com a capacidade de regeneração ambiental (é preciso que a água tenha as mesmas qualidades iniciais, que os animais voltem a reabitar a área danificada, o equilíbrio ecológico se restabeleça).
A recomposição do bem lesado, dada a natureza dos bens ambientais, é de difícil implementação, quando não, de todo impossível. Como tal, muitas vezes há que ponderar se a obrigação do “não fazer” não é a solução mais adequada, se estiver em causa uma reparação ambiental que sacrifica mais do que repara, como por exemplo, a necessidade de retirar areia do leito de rios, o corte de árvores, a retirada de animais considerados espécies raras que não vão subsistir noutro habitat. As medidas a tomar deverão ser ponderadas de forma a não serem criados bens naturais fragilizados, com os consequentes ecossistemas desequilibrados, insuficientes, ficando a longo prazo impossibilitados de garantirem a capacidade funcional inata e espectável. Os bens naturais afectados só estarão numa relação de equivalência com os recompostos, quando as suas funções ecológicas se restabelecem de forma auto-sustentada. Esta ponderação de valores é suportada pelo princípio da proporcionalidade. Este principio pode ser reduzido a três subprincípios: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Relativamente ao último subprincípio referido – proporcionalidade em sentido estrito, este deve ser visto como um limite à aplicação de uma medida, e não como um critério para a escolha da medida de reparação a aplicar.  
Na grande maioria dos casos, o direito à reparação atende aos benefícios que se possam obter, sendo que se estes se demonstrarem pouco significativos em termos ambientais, ou os custos de implementação se revelem excessivamente altos, conclui-se pela irreversibilidade do dano.
Contudo, o principal objectivo é a conservação do meio ambiente, procurando dar-lhe total segurança jurídica, na medida em que o poluidor é obrigado a assumir todo o risco respeitante à sua actividade de produção, bem como todos os ónus que lhes estão inerentes, incutindo-lhe um sentimento de dissuasão em provocar danos irremediáveis no sistema ambiental.

            2 – A Compensação Indemnizatória

Quanto à segunda forma de reparação do dano ecológico (indemnização em dinheiro), apraz-nos referir apenas (porque, tal como dissemos no inicio do comentário, não nos vamos debruçar sobre esta forma de reparação, cingindo-nos apenas à restituição natural) que esta só deve ter lugar quando não seja possível a adopção de um dos dois modos de restauração natural (restauração ecológica ou compensação ecológica), podendo então ser classificada de subsidiária relativamente aos modos de restauração natural.

A Responsabilidade por Dano Ecológico no Regime Jurídico da Responsabilidade Civil por Danos Ambientais – Decreto-lei nº147/2008, de 29 de Julho

Tendo sido o objecto deste trabalho limitado à responsabilidade por dano ecológico, no Regime Jurídico da Responsabilidade Civil por Danos Ambientais (Decreto-lei nº147/2008, de 29 de Julho – RJRCDA) este encontra-se regulado no Capítulo III denominado “Responsabilidade administrativa pela prevenção e reparação de danos ambientais”. No entendimento da Professora Carla Amado Gomes, o título do Capítulo III encontra-se totalmente desconexo com a totalidade do RJRCDA, senão vejamos: logo no art. 2º nº1, o RJRCDA começa por explicitar que o regime da responsabilidade por dano ecológico aplica-se a “uma qualquer actividade desenvolvida no âmbito de uma actividade económica, independentemente do seu carácter público ou privado, lucrativo ou não”. Como tal, se não importa o carácter público ou privado da actividade para que a o RJRCDA se aplique, não se entende o porquê da adopção desta denominação, visto que se com esta se quisesse excluir a aplicação do RJRCDA às entidades privadas, este esvaziar-se-ia parcialmente. Nem tão pouco se deve considerar o RJRCDA como um substituto do regime jurídico que estabelece a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, no domínio dos danos ecológicos, visto que neste existem normas e modalidades de imputação especificas em relação às entidades públicas.
Não querendo escrutinar por completo o regime constante do RJRCDA, faremos apenas uma análise global das suas disposições. Como tal, podemos desde já precisar que do RJRCDA emergem três tipos de reparação:
1.      Reparação Primária (Reconstituição):
·         É devolvido ao ambiente o seu estado precedente à ocorrência do dano ou a equivalente;
2.      Reparação Complementar:
·         Opera sempre que a reparação primária não tenha resultado totalmente, ou seja, os recursos naturais e ou serviços danificados não puderem ser restituídos ao estado inicial. Nesta situação procura-se garantir similarmente o nível de recursos naturais e serviços, num local alternativo, observando que este esteja geograficamente relacionado com o danificado e os interesses da população lesada;
3.      Reparação Compensatória:
·         Não significa uma compensação monetária ao público, mas sim, uma compensação transitória de perdas resultantes pelos recursos naturais e serviços danificados não realizarem as suas funções ecológicas, até a reparação primária ser totalmente atingida
Como tal, as obrigações que têm de ser tidas em conta pelo operador resumem-se a três máximas:
1.      Prevenir – como primeiro passo;
2.      Reparar – de forma célere e eficaz;
3.      Comunicar – à autoridade competente, sempre que exista uma ameaça iminente ou um dano ambiental, que o mesmo possa provocar no âmbito da sua actividade ocupacional
Quanto à última máxima (dever de comunicação), esta advém dos artos. 14º nº 4 e 15º nº1 al. a). A autoridade com competência para poder actuar, nestes casos, com a finalidade de certificar que o operador adopta as medidas de prevenção e reparação necessárias, de forma a conter, controlar, eliminar ou orientar os factores contaminadores e danosos para o ambiente, é a APA – Agência Portuguesa do Ambiente. Esta tem por missão apresentar, incrementar e acompanhar a execução das políticas relativas ao ambiente, e desenvolvimento sustentável. Assim, o art 14º dispõe que o operador tem por dever adoptar as medidas de prevenção necessárias e adequadas aquando de ameaça iminente de danos ambientais, ou em caso de dano causado pelo exercício da sua actividade ocupacional, as que previnam a ocorrência de novas lesões, independentemente da sua, ou não, obrigação de reparação.
Sempre que a APA suporte as custas das medidas adoptadas, tem direito de regresso, exigindo-as do operador culposo, devidamente identificado, e caso este não as suporte na totalidade é accionada a garantia financeira obrigatória, que obedece ao princípio da exclusividade, destinadas só e unicamente para este fim (artos. 17º, 19º e 22º). Este direito de regresso pode ser exercido pela autoridade competente no prazo de 5 anos, prazo que se inicia a contar, por regra, a partir da data da conclusão das medidas adoptadas, porém, se a identificação dos operadores ou dos terceiros responsáveis se efectivar posteriormente, a contagem do prazo iniciar-se-á a partir dessa data (art.º 19º nº3). Muitas das vezes esta norma de direito de retorno não passa de boas intenções, visto que esta reserva-se unicamente aos operadores identificáveis e responsabilizados, não incluídos na exclusão de pagamento de custas, do art.º 20º do RJRCDA.
Nos termos do art.º 18º do RJRCDA, qualquer interessado pode solicitar a intervenção da APA (Anexo III, sobre o procedimento da APA perante um pedido de intervenção). O interessado está definido, no normativo, como toda a pessoa singular ou colectiva que possa vir, ou seja afectada por um dano ambiental, que tenha interesse suficiente no processo de decisão ambiental, invoque a violação de um direito ou interesse legítimo tutelado por lei. Muito embora a Directiva 2004/35/CE, de 21 de Abril (regime transversal de responsabilidade por danos ambientais na União Europeia), no seu parágrafo 2º, do nº 1 do art.º 12º, determine que é da competência de cada Estado-Membro esclarecer o significado das locuções “interesse suficiente” e “violação de um direito”, o diploma sobre a responsabilidade por danos ambientais não especifica o significado destas expressões. Saliente-se, que sendo o direito ao ambiente, no plano do direito subjectivo público, um direito constitucionalmente protegido – artos. 52º nº1 e 3 e 66º nº1 da CRP, é conferido a qualquer cidadão, como meio de intervir activamente na protecção do ambiente, ou de defesa dos seus bens pessoais/patrimoniais, o direito de requerer o pedido de intervenção, conferindo-lhe um poder legítimo de participação procedimental e de acção popular (art.º 2º nº1 da Lei 83/95, de 31 de Agosto sobre titularidade dos direitos de participação procedimental e do direito de acção popular).   
Por último, mas não menos importante, podemos referir que sempre que esteja em causa a ocorrência de um dano ambiental, efectivamente consumado, o operador apresenta medidas de reparação (sendo estas definidas no art.º 11º nº1 al. n) como “qualquer acção, ou conjunto de acções, incluindo medidas de carácter provisório, com o objectivo de reparar, reabilitar ou substituir os recursos naturais e os serviços danificados ou fornecer uma alternativa equivalente a esses recursos ou serviços (…)”) , tendo em conta o descrito no anexo V do RJRCDA, que estabelece um quadro comum no sentido de poderem ser escolhidas as medidas mais adequadas que assegurem essa mesma reparação, (por danos causados à água, às espécies e habitats naturais protegidos, e ao solo), cabendo à APA a sua apreciação e decisão.

  Bibliografia

CANOTILHO, J. J. Gomes:
            - “A Responsabilidade por Danos Ambientais – Aproximação Juspublicística”

GOMES, Carla Amado:
            - “A Responsabilidade Civil por Dano Ecológico – Reflexões preliminares sobre o novo regime instituído pelo DL 147/2008, de 29 de Julho” in “O que há de novo no Direito do Ambiente? – Actas das Jornadas de Direito do Ambiente

OLIVEIRA, Heloísa:
            - “A restauração natural no novo Regime Jurídico de Responsabilidade Civil por Danos Ambientais” in “Actas do Colóquio – A Responsabilidade Civil por Dano Ambiental”

SENDIM, José de Sousa Cunhal:

            -“Responsabilidade Civil por Danos Ecológicos – Da Reparação do Dano através de Restauração Natural”

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