A utopia da busca pelo risco zero: A necessidade de reacção a uma
integração supranacional de riscos
Breve Introdução: o
aparecimento de uma nova sociedade
Devido à constante
interacção entre o Homem e a Natureza tem-se assistido nos últimos anos, desde
a Revolução Industrial, a um fenómeno designado “sociedade de risco
mundial/global”.
O conceito desta
sociedade nasceu em 1986 pelas mãos do sociólogo alemão Ulrich Beck, na sua
obra “A sociedade do risco, rumo a uma nova modernidade”, onde aborda a
sociedade pós-industrial realçando o aspecto que tanto a caracteriza: alterações
económicas; surgimento de novas tecnologias e existência constante de riscos.
Neste tipo de sociedade
defrontamo-nos com o permanente aparecimento de riscos e receios por um lado e
com melhorias da qualidade de vida e da tecnologia por outro.
Contudo, tal como
tudo na vida só se consegue com esforço, dedicação e investimento, o mesmo
acontece ao nível do Direito do Ambiente, onde para que progressos que verifiquem,
riscos, medos e receios os acompanham. Mas relembre-se, sem estes riscos imprevisíveis
e receios, nunca teríamos descobertas como a engenharia genética e a energia
nuclear.
Os riscos actuais não
só são em maior número, na medida em que antes as fontes de perigo eram
localizadas (provenientes de fábricas e das cidades industrializadas) como
também são mais intensos, assumindo uma escala planetária e não existindo
nenhum sítio imune à poluição ou a uma possível catástrofe ecológica mas sim
uma dificuldade de previsibilidade e controlabilidade.
O marco de viragem na
alteração dos riscos ambientais sucedeu com o desastre nuclear de Chernobyl em
26 de Abril de 1986, quando uma nuvem radioactiva se espalhou sobre grande
parte do planeta e a Humanidade teve de aprender a lidar com a perspectiva de
catástrofes naturais.
Neste contexto,
observamos que a par da globalização económica e cultural, simultaneamente
assistimos a uma globalização de riscos.
A integração
supranacional dos riscos é marcada por toda esta globalização com a produção
industrial, sabendo que as cadeias de alimentos e produtos conectam na prática
todos os habitantes da Terra.
Não se trata só de
tentar alcançar algo “bom” mas sobretudo de evitar o pior.
Não podemos contudo associar
a multiplicação e a intensificação dos riscos à Técnica e esquecermo-nos que,
também esta poderá, por outro lado, servir para minimizar ou prevenir esses
mesmos riscos, sendo o risco do desenvolvimento tecnológico o “motor do
progresso” e, nas palavras do Professor Tiago Antunes, “a causa da doença, mas
também a sua cura”. [1]
O risco origina receios
mas também progresso e bem-estar e, como tal, as decisões da Administração
devem assentar em critérios de racionalidade. Embora haja instabilidade, esta
não deverá justificar a paralisia e não se deve procurar atingir a eliminação
da incerteza mas sim que esta seja bem gerida.
A resposta ao
surgimento destes riscos passa, na opinião do Professor, pelo desenvolvimento
da própria tecnologia ao adoptar medidas adequadas a evitá-los e nunca por um “retorno
à idade da pedra”.
Qual a diferença entre
risco e perigo?
Para estarmos diante de
um perigo, é necessário que haja conhecimento, assente num juízo de prognose ou
em dados da experiência de que determinada acção provocará um dano a um bem
jurídico, existindo uma probabilidade relevante e uma ameaça concreta.
De modo distinto, o
risco é um perigo eventual, ou seja, não existe uma probabilidade considerável
da verificação do dano.
Entre estas duas
realidades também se poderá verificar uma álea, isto é, um risco residual, onde
a sua concretização é bastante improvável por estar fora do alcance humano e
conhecimento técnico e, como tal, considerada pela sociedade como aceitável.
O que são princípios jurídicos
ambientais?
Um princípio deve ser
normativo, isto é, deve prescrever um comportamento determinado aos
destinatários, ainda que alguns destes princípios de Direito do Ambiente (como
o princípio do desenvolvimento sustentável ou o princípio da precaução) sejam
alvos de uma aplicação casuística e remetidos a “sound bites” alvos de considerações de oportunidade política.
A utilidade dos
princípios assenta em três factores: concretização de um padrão de validade das
soluções legais; apoio interpretativo; instrumento integrativo de lacunas. [2],
sendo fulcral o recurso aos princípios quando uma norma se
revelar ambígua.
A Constituição da
República Portuguesa consagra um conjunto de princípios fundamentais em matéria
ambiental, tais como: o princípio da prevenção; do desenvolvimento sustentável;
do aproveitamento racional dos recursos naturais e do poluidor-pagador – artigo
66ºCRP.
O princípio da precaução
e da prevenção
É bem visível a
discussão que actualmente existe na diferenciação entre prevenção e precaução.
O âmbito de aplicação
do princípio da precaução vigora para as situações em que exista um verdadeiro
risco demonstrado ou hipotético (suspeita de um perigo), contrariamente ao
âmbito do princípio da prevenção que se destina às situações em que a
intensidade do risco não represente um verdadeiro perigo.
O princípio da
precaução tem sido muito controvertido na doutrina, alvo de três concepções
possíveis:
ü Uma
visão sobretudo economicista que procura cingir a sua actuação aos riscos que
comportem uma grande possibilidade de verificação e idóneos a provocar danos
graves e irreparáveis, estando a aplicação das medidas de precaução sujeitas a
uma ponderação de custos económicos;
ü Uma
concepção maximalista que o reconduz a uma regra de abstenção, exigindo-se a
garantia do “risco zero”, a inversão total do ónus da prova e ainda em caso de
não haver prova, se desconsideram os limites advenientes dos custos económicos
e sociais da proibição daquela actividade, prevendo-se o pior cenário possível;
ü Uma
concepção intermédia, em busca de uma nova atitude face ao risco, procurando-se
que não se corram riscos sérios mas que também “o feitiço não se vire contra o
feiticeiro” e se deixe de correr quaisquer riscos.
Este princípio assume a
potencialidade do risco e preocupa-se com a adopção das devidas cautelas em
relação às actividades humanas, mesmo que ainda não existam provas científicas
irrefutáveis quanto à existência de um nexo de causalidade entre tal acção e os
efeitos nefastos que comporte ao Ambiente assente em determinado nexo de
causalidade, na medida em que “não é por um bater-de-asas de borboleta na
Europa que alguém morre na China”.
De modo diferente, o
princípio da prevenção procura evitar que uma humana ou natural possivelmente
perigosa venha a produzir os efeitos indesejáveis, sendo o perigo certo e não
meramente potencial e procurando-se a adopção de meios que permitam evitar a
produção de tais efeitos danosos e não já uma reacção a tais lesões.
Contudo, deverá
conciliar-se esta racionalidade e esta modernidade reflexiva com a tutela
ambiental ao nível do princípio da prevenção e do domínio da responsabilidade civil,
na medida em que, perante a possibilidade de existência de diversas causas e da
dificuldade em determinar assertivamente a relação causa-efeito entre o acto
ilícito e o dano mas exista alguém que possa ter causado esses danos, o Direito
do Ambiente deverá estabelecer uma presunção de causalidade.
Na opinião do Professor
Gomes Canotilho, o princípio da precaução é o que mais protege o ambiente,
aplicando-se sempre em caso de dúvida – in
dúbio pro ambiente – isto é, na dúvida entre a perigosidade ou não de
determinada actividade para o ambiente, decide-se a favor deste e não do
potencial poluidor, tendo este de provar que tal actividade não é
potencialmente danosa ao ambiente (inversão do ónus da prova) e não sendo
necessária a certeza de tais efeitos negativos. [3]
Também o Professor regente Vasco Pereira
da Silva vai na linha de pensamento da Professora Carla Amado Gomes ao
pretender uma noção ampla de prevenção, entendendo o Professor que prevenção e
precaução são “duas faces da mesma moeda”, duas expressões sinónimas, devendo o
conceito de prevenção englobar a precaução. [5],
fundamentando a sua opinião na natureza linguística (na medida em que a
distinção entre prevenção e precaução parece assentar numa identidade
vocabular, devendo evitar complicar-se a vida a não-juristas); e no conteúdo
material (não sendo unívocos os critérios de distinção entre cada princípio).
O Professor salienta a inadequação entre
reportar os perigos à prevenção decorrente de causas naturais e a precaução aos
riscos provocados por acções humanas, sendo que na realidade das sociedades
pós-industrializadas, as lesões ambientais são o resultado de um concurso de
causas onde é impossível distinguir rigorosamente factos naturais de
comportamentos humanos e discorda totalmente da inversão do ónus da prova que o
princípio da precaução comporta, considerando que tal exigência pode
representar um factor inibidor de qualquer fenómeno de mudança, possível de se
virar contra a tutela ambiental (dando como o exemplo a reacção “emocional” das
populações à instalação de um aterro sanitário).
Já Derani entende que o princípio da precaução
é um princípio estruturante de Direito do Ambiente, correspondendo à essência
do Direito Ambiental e a uma nova modalidade de relações do saber e do poder. [6]
O princípio da precaução tem
recebido acolhimento por exemplo também no tocante à poluição do meio ambiente
marinho, onde foi permitido aos Estados, no Preâmbulo da Declaração Ministerial
de Bremen de 1984, apresentada na Conferência Internacional sobre Protecção do
Mar do Norte, anteciparem as suas acções sem ter de esperar pelas provas
conclusivas dos efeitos prejudiciais de determinada actividade para actuarem.
Devido à sua imprecisão, existem
alguns requisitos para aplicação do princípio da precaução, tais como:
i) Suspeita de que determinada técnica ou
actividade comporta um risco de produção de danos ambientais, ainda que se
desconheça a sua probabilidade de verificação;
ii)
Perante impactos ambientais já
verificados, não seja possível apurar a sua causa;
iii)
Impossibilidade de demonstração da
existência de nexo de causalidade entre o desenvolvimento da actividade e os
danos.
Existem
também algumas ideia a reter para a concretização desta aplicação, a saber:
Ø Deverão
ser sempre tomadas as medidas necessárias para impedir a ocorrência dos danos,
ainda que não existam provas científicas que permitam estabelecer o nexo causal
actividade-dano. É, assim, necessário gerir os riscos ambientais, procurando-se
medidas preventivas que se revelem posteriormente menos onerosas para a
sociedade;
Ø Regra
geral, o ónus da prova recai sobre quem pretende alterar o status quo. Prevê-se uma inversão do ónus da prova, tendo de ser
quem pretende desenvolver determinada actividade económica que prove que os
riscos associados são aceitáveis ou que não prejudicam o Ambiente (a título de
exemplo, a União Europeia aplica esta inversão aos casos de introdução no
mercado de novas substâncias, como pesticidas, sendo estas proibidas, excepto
se se provar que são seguras);
Ø A
aplicabilidade do princípio da precaução requer uma prova não só procedimento como
também processual. Após a avaliação do impacto ambiental e a ponderação entre
custos e benefícios, se existir dúvidas quanto à produção de determinado dano,
será prioritária a protecção ambiental os interesses ambientais (in dúbio pro ambiente) em prol dos
interesses económicos (in dúbio contra
projectum), concretizando-se esta ideia através do estabelecimento de
presunções legais de cautela, onde se dá prevalência à sobreprotecção e não à
subestimação (já utilizado nos EUA, onde os riscos conhecidos de certas
substâncias servem para testar a perigosidade de outras);
Ø Os
limites de tolerância ambiental não devem ser forçados nem transgredidos,
visando-se a segurança na fixação de valores de emissão de poluentes e de
normas de qualidade para confrontar os novos riscos. Neste contexto, os limites
de segurança deverão ser os mínimos possíveis (as low as reasonably praticable) adoptando proporcionalmente as
melhores tecnologias economicamente possíveis, métodos operacionais limpos e a
formação de agentes económicos para a gestão dos riscos ambientais. O uso das
melhores técnicas disponíveis – BAT (best available technology) converte-se no
uso das melhores técnicas disponíveis que não impliquem um custo excessivo –
BATNEEC (Best available technology not entailing excessive costs);
Ø Concedendo-se
liberdade aos sistemas ecológicos para que estes preservem a diversidade
genética dos processos ecológicos essenciais, através da preservação das
reservas naturais e protecção das espécies. Recentemente, o princípio da
precaução foi mesmo invocado para constituir fundamento para o não levantamento
da moratória na caça às baleias em vias de extinção, por ainda não ter sido
demonstrado que tal espécie se encontre fora de perigo. Deve ter-se em
consideração o risco que a ocupação de todo o território e a intervenção
ilimitada nos sistemas ecológicos implica, mesmo que sejam adoptadas todas as
medidas necessárias a impedir a ocorrência de danos ambientais;
Ø Possibilidade
de aparecimento de uma “ciência verde” ancorada na promoção da investigação científica
e realização de estudos sobre a potencialidade dos riscos de dada actividade/sobre
o seu impacto ambiental, através da criação de grupos de consulta e divulgação
dos novos conhecimentos, em busca de uma tomada de decisões assente na melhor
informação científica disponível.
Conclusão
Em suma, cumpre ter a
noção de que uma sociedade e vivência ambiental de “risco zero” não é possível.
Como afirma EDGAR MORIN, “vive-se uma
época em que se pretende eliminar a existência da ideia de risco. Cada um
esquece que a sua própria existência é uma aventura, o acidente que não se sabe
mais enfrentar torna-se um evento incompreensível que exige sistematicamente
uma compensação”.
Tal como a Humanidade,
a técnica e a Ciência também têm as suas limitações e os seus erros, podendo
julgar-se que determinado risco está afastado e, posteriormente, vir mesmo a
verificar-se. Contudo, tal não significa que se devam adoptar medidas contra
riscos residuais mas somente face a riscos sérios, cuja ocorrência se apresenta
como certa.
Neste contexto, a
aplicação do princípio da precaução deverá ser articulada com o princípio da
proporcionalidade, considerando o grau de gravidade do dano e a
irreversibilidade dos danos possivelmente já causados.
Na minha opinião, deverão
ser ponderados todos os custos, não só financeiros como também sociais e não
deverão ser tomadas posições extremistas como a visão meramente economicista do
princípio ou a concepção que exige uma existência irrealista de “risco zero”,
mas sim uma visão que veja o princípio da precaução como uma tentativa de
implementação de uma cultura e gestão proactiva do risco, baseada na identificação
dos riscos, utilizando o lado positivo da técnica para o estudo da probabilidade
do impacto do risco que cada actividade comporta e na delimitação do aceitável,
isto é, a busca de uma “gestão global do risco”.
O grau de precaução e a
paralisação das actividades económicas em prol do ambiente tem de ser
proporcional ao grau de certeza científica que existe e à gravidade dos danos
potenciais.
Precisamente para
inverter a tendência de não trocar o certo pelo incerto é que um dos corolários
do princípio da precaução é a inversão do ónus da prova, reforçado pelo
critério de decisão in dúbio pro ambiente.
Em suma, o princípio da
precaução necessita de mecanismos de controlo e de um quadro legal que
estabeleça novos processos e técnicas mais amigas do ambiente, a adaptação aos
novos conhecimentos da ciência e técnica e ao evoluir das situações, exigência
de novos parâmetros de qualidade e até que haja a possibilidade de revogação da
autorização concedida se o risco assumir uma intensidade superior ou se
converter num perigo.
[1] Tiago Antunes, “Ambiente, Direito e Técnica”, pág.12
[2] J. J. Gomes Canotilho, Introdução ao
Direito do Ambiente (coord.), Lisboa, 1998, pág.43
[3] Joaquim José Gomes Canotilho, Introdução ao direito do
ambiente, Lisboa, 1998, pág.48
[4] Carla Amado Gomes, Risco e modificação do acto autorizativo
concretizador de deveres de protecção do ambiente, Lisboa, 2007, pág.361
[5] Vasco Pereira da Silva, Verde cor de direito: lições de
direito do ambiente, Coimbra, 2002, pág.68
[6] Cristiane Derani, Direito Ambiental Económico, 2º edição, São
Paulo, 2001, pág.169
Bibliografia:
1 - Vasco Pereira da Silva, "Verde Cor de Direito - Lições de Direito do Ambiente", 2002, pág. 65 a 75
2 - Tiago Antunes, "O Ambiente entre o Direito e a Técnica", 2003, pág. 9 a 13
3 - Carla Amado Gomes, "As Providências cautelares e o «princípio da precaução»: ecos da jurisprudência, 2012, pág. 57 a 63
4 - Levi Sottomaior Souza Filho, "O princípio da precaução e o papel do Estado na gestão do risco ambiental", pág. 6 a 31
5 - Ana Gouveia e Freitas Martins, "o Princípio da precaução no Direito do Ambiente", pág. 53 a 73
6 - João Hélio Ferreira Pes; Rafael Santos de Oliveira, "Direito Ambiental Contemporâneo: prevenção e precaução", 2009
Visto.
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