sexta-feira, 16 de maio de 2014

A utopia da busca pelo risco zero: A necessidade de reacção a uma integração supranacional de riscos

Breve Introdução: o aparecimento de uma nova sociedade

Devido à constante interacção entre o Homem e a Natureza tem-se assistido nos últimos anos, desde a Revolução Industrial, a um fenómeno designado “sociedade de risco mundial/global”.
O conceito desta sociedade nasceu em 1986 pelas mãos do sociólogo alemão Ulrich Beck, na sua obra “A sociedade do risco, rumo a uma nova modernidade”, onde aborda a sociedade pós-industrial realçando o aspecto que tanto a caracteriza: alterações económicas; surgimento de novas tecnologias e existência constante de riscos.
Neste tipo de sociedade defrontamo-nos com o permanente aparecimento de riscos e receios por um lado e com melhorias da qualidade de vida e da tecnologia por outro. 
Contudo, tal como tudo na vida só se consegue com esforço, dedicação e investimento, o mesmo acontece ao nível do Direito do Ambiente, onde para que progressos que verifiquem, riscos, medos e receios os acompanham. Mas relembre-se, sem estes riscos imprevisíveis e receios, nunca teríamos descobertas como a engenharia genética e a energia nuclear.
Os riscos actuais não só são em maior número, na medida em que antes as fontes de perigo eram localizadas (provenientes de fábricas e das cidades industrializadas) como também são mais intensos, assumindo uma escala planetária e não existindo nenhum sítio imune à poluição ou a uma possível catástrofe ecológica mas sim uma dificuldade de previsibilidade e controlabilidade.
O marco de viragem na alteração dos riscos ambientais sucedeu com o desastre nuclear de Chernobyl em 26 de Abril de 1986, quando uma nuvem radioactiva se espalhou sobre grande parte do planeta e a Humanidade teve de aprender a lidar com a perspectiva de catástrofes naturais.
Neste contexto, observamos que a par da globalização económica e cultural, simultaneamente assistimos a uma globalização de riscos.
A integração supranacional dos riscos é marcada por toda esta globalização com a produção industrial, sabendo que as cadeias de alimentos e produtos conectam na prática todos os habitantes da Terra.
 Não se trata só de tentar alcançar algo “bom” mas sobretudo de evitar o pior.
Não podemos contudo associar a multiplicação e a intensificação dos riscos à Técnica e esquecermo-nos que, também esta poderá, por outro lado, servir para minimizar ou prevenir esses mesmos riscos, sendo o risco do desenvolvimento tecnológico o “motor do progresso” e, nas palavras do Professor Tiago Antunes, “a causa da doença, mas também a sua cura”. [1]
 O risco origina receios mas também progresso e bem-estar e, como tal, as decisões da Administração devem assentar em critérios de racionalidade. Embora haja instabilidade, esta não deverá justificar a paralisia e não se deve procurar atingir a eliminação da incerteza mas sim que esta seja bem gerida.
A resposta ao surgimento destes riscos passa, na opinião do Professor, pelo desenvolvimento da própria tecnologia ao adoptar medidas adequadas a evitá-los e nunca por um “retorno à idade da pedra”.

Qual a diferença entre risco e perigo?
Para estarmos diante de um perigo, é necessário que haja conhecimento, assente num juízo de prognose ou em dados da experiência de que determinada acção provocará um dano a um bem jurídico, existindo uma probabilidade relevante e uma ameaça concreta.
De modo distinto, o risco é um perigo eventual, ou seja, não existe uma probabilidade considerável da verificação do dano.
Entre estas duas realidades também se poderá verificar uma álea, isto é, um risco residual, onde a sua concretização é bastante improvável por estar fora do alcance humano e conhecimento técnico e, como tal, considerada pela sociedade como aceitável.


O que são princípios jurídicos ambientais?
Um princípio deve ser normativo, isto é, deve prescrever um comportamento determinado aos destinatários, ainda que alguns destes princípios de Direito do Ambiente (como o princípio do desenvolvimento sustentável ou o princípio da precaução) sejam alvos de uma aplicação casuística e remetidos a “sound bites” alvos de considerações de oportunidade política.
A utilidade dos princípios assenta em três factores: concretização de um padrão de validade das soluções legais; apoio interpretativo; instrumento integrativo de lacunas. [2], sendo fulcral o recurso aos princípios quando uma norma se revelar ambígua.
A Constituição da República Portuguesa consagra um conjunto de princípios fundamentais em matéria ambiental, tais como: o princípio da prevenção; do desenvolvimento sustentável; do aproveitamento racional dos recursos naturais e do poluidor-pagador – artigo 66ºCRP.

O princípio da precaução e da prevenção
É bem visível a discussão que actualmente existe na diferenciação entre prevenção e precaução.
O âmbito de aplicação do princípio da precaução vigora para as situações em que exista um verdadeiro risco demonstrado ou hipotético (suspeita de um perigo), contrariamente ao âmbito do princípio da prevenção que se destina às situações em que a intensidade do risco não represente um verdadeiro perigo.
O princípio da precaução tem sido muito controvertido na doutrina, alvo de três concepções possíveis:
ü  Uma visão sobretudo economicista que procura cingir a sua actuação aos riscos que comportem uma grande possibilidade de verificação e idóneos a provocar danos graves e irreparáveis, estando a aplicação das medidas de precaução sujeitas a uma ponderação de custos económicos;
ü  Uma concepção maximalista que o reconduz a uma regra de abstenção, exigindo-se a garantia do “risco zero”, a inversão total do ónus da prova e ainda em caso de não haver prova, se desconsideram os limites advenientes dos custos económicos e sociais da proibição daquela actividade, prevendo-se o pior cenário possível;
ü  Uma concepção intermédia, em busca de uma nova atitude face ao risco, procurando-se que não se corram riscos sérios mas que também “o feitiço não se vire contra o feiticeiro” e se deixe de correr quaisquer riscos.
Este princípio assume a potencialidade do risco e preocupa-se com a adopção das devidas cautelas em relação às actividades humanas, mesmo que ainda não existam provas científicas irrefutáveis quanto à existência de um nexo de causalidade entre tal acção e os efeitos nefastos que comporte ao Ambiente assente em determinado nexo de causalidade, na medida em que “não é por um bater-de-asas de borboleta na Europa que alguém morre na China”.
De modo diferente, o princípio da prevenção procura evitar que uma humana ou natural possivelmente perigosa venha a produzir os efeitos indesejáveis, sendo o perigo certo e não meramente potencial e procurando-se a adopção de meios que permitam evitar a produção de tais efeitos danosos e não já uma reacção a tais lesões.
Contudo, deverá conciliar-se esta racionalidade e esta modernidade reflexiva com a tutela ambiental ao nível do princípio da prevenção e do domínio da responsabilidade civil, na medida em que, perante a possibilidade de existência de diversas causas e da dificuldade em determinar assertivamente a relação causa-efeito entre o acto ilícito e o dano mas exista alguém que possa ter causado esses danos, o Direito do Ambiente deverá estabelecer uma presunção de causalidade.
Na opinião do Professor Gomes Canotilho, o princípio da precaução é o que mais protege o ambiente, aplicando-se sempre em caso de dúvida – in dúbio pro ambiente – isto é, na dúvida entre a perigosidade ou não de determinada actividade para o ambiente, decide-se a favor deste e não do potencial poluidor, tendo este de provar que tal actividade não é potencialmente danosa ao ambiente (inversão do ónus da prova) e não sendo necessária a certeza de tais efeitos negativos. [3]
 De modo diferente, a Professora Carla Amado Gomes defende que a precaução é uma ideia irrealista, na medida em que não há possibilidade de existência de um “risco zero” e perigosa, por comportar uma extensão ad infinitum da competência de decisão em quadros de incerteza que privilegia desrazoavelmente a segurança em detrimento da liberdade. O que deveria existir seria uma prevenção alargada conjugada com o princípio da proporcionalidade. [4]
Também o Professor regente Vasco Pereira da Silva vai na linha de pensamento da Professora Carla Amado Gomes ao pretender uma noção ampla de prevenção, entendendo o Professor que prevenção e precaução são “duas faces da mesma moeda”, duas expressões sinónimas, devendo o conceito de prevenção englobar a precaução. [5], fundamentando a sua opinião na natureza linguística (na medida em que a distinção entre prevenção e precaução parece assentar numa identidade vocabular, devendo evitar complicar-se a vida a não-juristas); e no conteúdo material (não sendo unívocos os critérios de distinção entre cada princípio).
O Professor salienta a inadequação entre reportar os perigos à prevenção decorrente de causas naturais e a precaução aos riscos provocados por acções humanas, sendo que na realidade das sociedades pós-industrializadas, as lesões ambientais são o resultado de um concurso de causas onde é impossível distinguir rigorosamente factos naturais de comportamentos humanos e discorda totalmente da inversão do ónus da prova que o princípio da precaução comporta, considerando que tal exigência pode representar um factor inibidor de qualquer fenómeno de mudança, possível de se virar contra a tutela ambiental (dando como o exemplo a reacção “emocional” das populações à instalação de um aterro sanitário).
Já Derani entende que o princípio da precaução é um princípio estruturante de Direito do Ambiente, correspondendo à essência do Direito Ambiental e a uma nova modalidade de relações do saber e do poder. [6]
          O princípio da precaução tem recebido acolhimento por exemplo também no tocante à poluição do meio ambiente marinho, onde foi permitido aos Estados, no Preâmbulo da Declaração Ministerial de Bremen de 1984, apresentada na Conferência Internacional sobre Protecção do Mar do Norte, anteciparem as suas acções sem ter de esperar pelas provas conclusivas dos efeitos prejudiciais de determinada actividade para actuarem.
            Devido à sua imprecisão, existem alguns requisitos para aplicação do princípio da precaução, tais como:
i)                  Suspeita de que determinada técnica ou actividade comporta um risco de produção de danos ambientais, ainda que se desconheça a sua probabilidade de verificação;
ii)                  Perante impactos ambientais já verificados, não seja possível apurar a sua causa;
iii)                Impossibilidade de demonstração da existência de nexo de causalidade entre o desenvolvimento da actividade e os danos.
Existem também algumas ideia a reter para a concretização desta aplicação, a saber:
Ø  Deverão ser sempre tomadas as medidas necessárias para impedir a ocorrência dos danos, ainda que não existam provas científicas que permitam estabelecer o nexo causal actividade-dano. É, assim, necessário gerir os riscos ambientais, procurando-se medidas preventivas que se revelem posteriormente menos onerosas para a sociedade;
Ø  Regra geral, o ónus da prova recai sobre quem pretende alterar o status quo. Prevê-se uma inversão do ónus da prova, tendo de ser quem pretende desenvolver determinada actividade económica que prove que os riscos associados são aceitáveis ou que não prejudicam o Ambiente (a título de exemplo, a União Europeia aplica esta inversão aos casos de introdução no mercado de novas substâncias, como pesticidas, sendo estas proibidas, excepto se se provar que são seguras);
Ø  A aplicabilidade do princípio da precaução requer uma prova não só procedimento como também processual. Após a avaliação do impacto ambiental e a ponderação entre custos e benefícios, se existir dúvidas quanto à produção de determinado dano, será prioritária a protecção ambiental os interesses ambientais (in dúbio pro ambiente) em prol dos interesses económicos (in dúbio contra projectum), concretizando-se esta ideia através do estabelecimento de presunções legais de cautela, onde se dá prevalência à sobreprotecção e não à subestimação (já utilizado nos EUA, onde os riscos conhecidos de certas substâncias servem para testar a perigosidade de outras);
Ø  Os limites de tolerância ambiental não devem ser forçados nem transgredidos, visando-se a segurança na fixação de valores de emissão de poluentes e de normas de qualidade para confrontar os novos riscos. Neste contexto, os limites de segurança deverão ser os mínimos possíveis (as low as reasonably praticable) adoptando proporcionalmente as melhores tecnologias economicamente possíveis, métodos operacionais limpos e a formação de agentes económicos para a gestão dos riscos ambientais. O uso das melhores técnicas disponíveis – BAT (best available technology) converte-se no uso das melhores técnicas disponíveis que não impliquem um custo excessivo – BATNEEC (Best available technology not entailing excessive costs);
Ø  Concedendo-se liberdade aos sistemas ecológicos para que estes preservem a diversidade genética dos processos ecológicos essenciais, através da preservação das reservas naturais e protecção das espécies. Recentemente, o princípio da precaução foi mesmo invocado para constituir fundamento para o não levantamento da moratória na caça às baleias em vias de extinção, por ainda não ter sido demonstrado que tal espécie se encontre fora de perigo. Deve ter-se em consideração o risco que a ocupação de todo o território e a intervenção ilimitada nos sistemas ecológicos implica, mesmo que sejam adoptadas todas as medidas necessárias a impedir a ocorrência de danos ambientais;
Ø  Possibilidade de aparecimento de uma “ciência verde” ancorada na promoção da investigação científica e realização de estudos sobre a potencialidade dos riscos de dada actividade/sobre o seu impacto ambiental, através da criação de grupos de consulta e divulgação dos novos conhecimentos, em busca de uma tomada de decisões assente na melhor informação científica disponível.

Conclusão
Em suma, cumpre ter a noção de que uma sociedade e vivência ambiental de “risco zero” não é possível. Como afirma EDGAR MORIN, “vive-se uma época em que se pretende eliminar a existência da ideia de risco. Cada um esquece que a sua própria existência é uma aventura, o acidente que não se sabe mais enfrentar torna-se um evento incompreensível que exige sistematicamente uma compensação”.
Tal como a Humanidade, a técnica e a Ciência também têm as suas limitações e os seus erros, podendo julgar-se que determinado risco está afastado e, posteriormente, vir mesmo a verificar-se. Contudo, tal não significa que se devam adoptar medidas contra riscos residuais mas somente face a riscos sérios, cuja ocorrência se apresenta como certa.
Neste contexto, a aplicação do princípio da precaução deverá ser articulada com o princípio da proporcionalidade, considerando o grau de gravidade do dano e a irreversibilidade dos danos possivelmente já causados.
Na minha opinião, deverão ser ponderados todos os custos, não só financeiros como também sociais e não deverão ser tomadas posições extremistas como a visão meramente economicista do princípio ou a concepção que exige uma existência irrealista de “risco zero”, mas sim uma visão que veja o princípio da precaução como uma tentativa de implementação de uma cultura e gestão proactiva do risco, baseada na identificação dos riscos, utilizando o lado positivo da técnica para o estudo da probabilidade do impacto do risco que cada actividade comporta e na delimitação do aceitável, isto é, a busca de uma “gestão global do risco”.
O grau de precaução e a paralisação das actividades económicas em prol do ambiente tem de ser proporcional ao grau de certeza científica que existe e à gravidade dos danos potenciais.
Precisamente para inverter a tendência de não trocar o certo pelo incerto é que um dos corolários do princípio da precaução é a inversão do ónus da prova, reforçado pelo critério de decisão in dúbio pro ambiente.
Em suma, o princípio da precaução necessita de mecanismos de controlo e de um quadro legal que estabeleça novos processos e técnicas mais amigas do ambiente, a adaptação aos novos conhecimentos da ciência e técnica e ao evoluir das situações, exigência de novos parâmetros de qualidade e até que haja a possibilidade de revogação da autorização concedida se o risco assumir uma intensidade superior ou se converter num perigo.


[1] Tiago Antunes, “Ambiente, Direito e Técnica”, pág.12
[2] J. J. Gomes Canotilho, Introdução ao Direito do Ambiente (coord.), Lisboa, 1998, pág.43
[3] Joaquim José Gomes Canotilho, Introdução ao direito do ambiente, Lisboa, 1998, pág.48
[4] Carla Amado Gomes, Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do ambiente, Lisboa, 2007, pág.361
[5] Vasco Pereira da Silva, Verde cor de direito: lições de direito do ambiente, Coimbra, 2002, pág.68
[6] Cristiane Derani, Direito Ambiental Económico, 2º edição, São Paulo, 2001, pág.169


Bibliografia:
1 - Vasco Pereira da Silva, "Verde Cor de Direito - Lições de Direito do Ambiente", 2002, pág. 65 a 75
2 - Tiago Antunes, "O Ambiente entre o Direito e a Técnica", 2003, pág. 9 a 13
3 - Carla Amado Gomes, "As Providências cautelares e o «princípio da precaução»: ecos da jurisprudência, 2012, pág. 57 a 63
4 - Levi Sottomaior Souza Filho, "O princípio da precaução e o papel do Estado na gestão do risco ambiental", pág. 6 a 31
5 - Ana Gouveia e Freitas Martins, "o Princípio da precaução no Direito do Ambiente", pág. 53 a 73
6 - João Hélio Ferreira Pes; Rafael Santos de Oliveira, "Direito Ambiental Contemporâneo: prevenção e precaução", 2009

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