sábado, 17 de maio de 2014

Da Autonomia do Princípio da Precaução

I-Introdução
                Estima-se que a população humana tenha atingido os 7 mil milhões em 2012. Apenas este dado não nos permite compreender as reais dimensões dos problemas que enfrentamos. Vejamos que, em meados do séc. XVIII, antes da revolução industrial, a população mundial era pouco mais de 770 milhões. Em trezentos anos verificou-se um crescimento exponencial da população, resultado da industrialização e do domínio da técnica. Apesar de todo este desenvolvimento, a pobreza, a fome e a doença continuam a ser realidades tão presentes como antes.[1]
Uma vez que a civilização se encontra ancorada ao ecossistema que representa o planeta terra, com os seus recursos limitados, é cada vez maior a preocupação dos estados em mitigar o impacto que a sociedade tem sobre o meio ambiente. Preocupação ainda maior se considerarmos que na esmagadora maioria das vezes, uma vez provocado o dano é impossível repará-lo. Vejamos que tal acontece com a extinção de uma espécie animal, ou no caso do aquecimento global, intensificado pela emissão de gases de estufa de origem humana, o degelo irreversível dos polos[2].
Nos moldes atuais, a subsistência da humanidade depende de se atingir um equilíbrio entre o desenvolvimento e o meio ambiente, condição sine quae non da sua existência.
O Direito do Ambiente surge com estas preocupações e tem procurado soluções que permitam aos Estados dar resposta a estes problemas. Um importante princípio ambiental é precisamente o princípio da prevenção, aqui utilizado numa aceção ampla.
No âmbito deste estudo iremos abordar o princípio da precaução e equacionar a possibilidade da sua autonomização em face do princípio da prevenção.

II – Princípio da Prevenção e Precaução - Teses
                Antes de analisarmos as duas vertentes, somos obrigados a explicitar o estado da questão na doutrina.
 Autores como o professor Vasco Pereira da Silva tratam do princípio da prevenção em sentido amplo, de maneira que, nele engloba o princípio da prevenção em sentido restrito e o princípio da precaução.[3] Na ótica de outros professores como Gomes Canotilho e Carla Amado Gomes, o princípio da precaução goza de um conteúdo autónomo e é tratado lado a lado com o princípio da prevenção.[4]
                Trata-se de uma tendência recente, que procede também do seu acolhimento no Direito Comunitário, no artigo 191º2 do TFUE, onde se prevê que a política da união no domínio do ambiente “basear-se-á nos princípios da precaução e da acção preventiva”

III – Fontes
                Dúvidas surgem, no entanto, quanto à vinculatividade deste princípio, isto é, se ele poderá ser recebido no nosso ordenamento pelo Direito Comunitário e, consequentemente, possa ser invocado em juízo pelos particulares para requerer a anulação de um ato administrativo.
                Esta questão alarga demasiado o escopo do presente estudo, pelo que nos limitaremos a referir a orientação do Tribunal de Justiça, acompanhada pela professora Carla Amado Gomes, que rejeita a vinculação direta dos Estado-Membros. Muito sucintamente, o artigo limita-se a estabelecer objetivos de política comunitária em matéria ambiental, os quais deverão resultar de posteriores escolhas políticas, daí que não decorra nenhuma obrigação clara ou incondicional.[5]               
                No ordenamento jurídico português o princípio da prevenção decorre do artigo 66º nº2 da CRP, onde se estabelece que, para assegurar o direito ao ambiente, incumbe ao Estado “prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão”.
                Por outro lado, também a Lei de Bases do Ambiente, lei 19/2014, elenca no seu artigo 3º nº 3 c) os princípios da “prevenção e da precaução, que obrigam à adoção de medidas antecipatórias com o objetivo de obviar ou minorar, prioritariamente na fonte, os impactes adversos no ambiente, com origem natural ou humana, tanto em face de perigos imediatos e concretos como em face de riscos futuros e incertos, da mesma maneira como podem estabelecer, em caso de incerteza científica, que o ónus da prova recaia sobre a parte que alegue a ausência de perigos ou riscos;”
                Parece-nos então que mesmo que o princípio da prevenção não decorra diretamente do Direito Comunitário ou que a CRP não o autonomize, encontramos uma lei ordinária que consagra expressamente o princípio da precaução.
                Antes de tomarmos posição acerca da questão de saber se é dogmaticamente sustentável autonomizar o princípio da precaução, cumpre analisar o seu conteúdo.        
     
IV – Princípio da Prevenção (Stricto Sensu)

                Com base neste princípio pretende-se evitar lesões ao meio ambiente. Não se trata de reparar os danos efetuados, este princípio atua num momento anterior, pois como refere o ditado popular “ mais vale prevenir do que remediar”[6]. No entanto, este princípio atua apenas quando existe uma certeza comprovada de que determinada atuação provocará danos graves para o meio ambiente, não bastando a mera suspeita.
                Vejamos que muitas vezes é impossível reparar o dano ambiental, como já referimos, por exemplo, o caso do degelo irreversível dos polos devido ao aquecimento global. Ainda assim, mesmo que seja possível, a proporção dos danos implica custos impossíveis de exigir ao poluidor, como o desastre da BP no golfo do méxico em que foram lançados no oceano mais de 7 milhões de litros de crude.[7]São incalculáveis os danos para o ambiente e para a população, que continuarão a produzir os seus efeitos em anos vindouros. O estádio atual da tecnologia não permite ainda controlar satisfatoriamente danos desta magnitude.
                Podemos assim compreender a necessidade de agir preventivamente nesta matéria.

V – Princípio da Precaução

                Como referimos anteriormente, a doutrina tem começado a autonomizar do princípio da prevenção outra dimensão, a precaução.
                A ideia de precaução surge quando existem dúvidas relativamente á perigosidade e à ocorrência potencial de danos para o ambiente. Verifica-se uma antecipação da tutela do ambiente quando existe “incerteza, por falta de provas científicas evidentes, sobre o nexo causal entre uma atividade e um determinado fenómeno de poluição ou degradação do ambiente”.[8] Ou seja, vamos impedir tal atuação até que a ciência consiga esclarecer se irão realmente ocorrer danos, beneficiando o ambiente ao invés do poluidor. Concordamos com Gomes Canotilho quando refere tratar-se de uma espécie de princípio “in dúbio pro ambiente”.
                O princípio da precaução tem ainda como consequência a inversão do ónus da prova, isto é, caberá ao poluidor comprovar que a atividade não trará danos graves e irreversíveis ao ambiente. Em direito do ambiente é uma inversão da sua lógica, pois “na grande maioria dos casos, é quem sofre a poluição ou quem, pura e altruisticamente, defende a Natureza, se vê sobrecarregado com o ónus de provar a causalidade entre ação poluente e o dano”. [9]Sabemos também os custos enormes que tal acarreta.

VI – Posição Adotada

                Como já tivemos oportunidade de referir, quanto à autonomização do principío da precaução, encontra-se em confronto a tese de Vasco pereira da Silva, que prefere enquadrá-lo no princípio da prevenção, e de Carla Amado Gomes, que defende a existência de um conteúdo material bastante para a sua autonomização.
                Quanto a esta última tese, vimos já que o artigo 191ºnº2 do TFUE não implica a receção automática deste princípio no ordenamento jurídico português. Para Carla Amado Gomes também não é possível identificar a nível constitucional um comando preciso, a não ser a partir do princípio da proporcionalidade. Diz a autora que a CRP aponta como objetivo do estado a preservação do equilíbrio ecológico por um lado, e, por outro, o desenvolvimento económico. De um lado uma atividade que implica despesa, mas que garante a riqueza ambiental, e de outro lado, atividade económicas geradoras de receita. Se olharmos para o princípio do desenvolvimento sustentável, vemos que na constituição obriga a uma ponderação destes interesses.
                O problema não se coloca quando existe certeza quanto à probabilidade do dano ambiental, ele surge quando, na ausência de certeza comprovada, se sacrifiquem direitos constitucionais em nome do ambiente. Vasco Pereira da Silva manifesta esta preocupação quando afirma que “atribuir dimensão jurídica a tal princípio representaria uma carga excessiva, inibidora de qualquer nova realidade, sem em que domínio for, uma vez que o risco zero em matéria ambiental não existe”.[10] Pensamos que, tendo em conta o princípio da proporcionalidade na CRP, tal questão não se colocaria, por mais “eco-fundamentalismo” que possa existir na sociedade, teria sempre de haver uma ponderação dos direitos fundamentais em presença. Desta forma o princípio da precaução seria invocado, no caso concreto, de forma a obrigar à ponderação do interesse na salvaguarda do ambiente face à liberdade de iniciativa económica, analisado numa lógica de proporcionalidade.
                 Parece que a nova Lei de Bases do Ambiente no seu artigo 3º nº 3 c), vem dissipar as dúvidas da doutrina e autonomizar o princípio da precaução. Dogmaticamente, podemos continuar a criticar o mérito desta solução, mormente a dificuldade de ponderar interesses económicos no curto prazo e interesses ambientais no longo prazo. Contudo é inegável que, embora o princípio da precaução não seja expressamente elevado a princípio constitucional, encontramos base legal para a sua autonomização.

                                                                                                                                Gonçalo Jorge Ferreira
                                                                                                                                            Aluno nº19168




[1] Dados do United States Census Bureau
[2] http://www.rtp.pt/noticias/index.php?article=737158&tm=7&layout=122&visual=61
[3] Vasco Pereira da Silva, “Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente”, Almedina, 2002, p. 67
[4] Gomes Canotilho, “Introdução ao Direito do Ambiente”, Universidade Aberta, 1998, p.44ss; Carla Amado Gomes, “A prevenção à Prova no Direito do Ambiente”, Coimbra Editora, 2000, p.22ss
[5] Carla Amado Gomes, op. Citado, pp.39ss e Luís Carlos Lopes Batista, “Contributo para a densificação do conteúdo jurídico do princípio da precaução no âmbito dos organismos geneticamente modificados”, p20, disponível em http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/833-1361.pdf
[6] Gomes Canotilho, op. Citado, p.44
[7] http://ocean.si.edu/gulf-oil-spill
[8] Gomes Canotilho, op. Citado, p.48
[9] Carla Amado Gomes, op. Citado, p. 36
[10] Vasco Pereira da Silva, op. Citado, p.70

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