Uma nova forma de actuação
Temos
vindo a assistir a uma evolução no paradigma de actuação da Administração ao longo
dos tempos. Num primeiro momento, associado à fase do Estado Liberal, o Estado
limitava-se ao mínimo indispensável de actuação, a Administração caracterizava-se
pelo seu comportamento de polícia, ora numa vertente preventiva, através de
autorizações e licenças, ora numa vertente repressiva, através de sanções
administrativas e contra-ordenações.
Posteriormente,
com o surgimento do Estado Social de Direito, passámos a ter uma Administração
prestadora e consequentemente verificámos uma alteração ao nível das formas de
actuação pelas quais a Administração se começou a pautar.
Actualmente
fala-se na existência de uma terceira fase, designada de Administração
prospectiva, ligada à ideia de um Estado Pós-Social em que o Estado deixa de
intervir tanto ao nível prestacional, envolvendo-se de forma mais acentuada na
criação de infra-estruturas para que os objectivos possam ser prosseguidos. Ao
nível dos instrumentos a que esta Administração prospectiva deita mão, cabe
referenciar o crescente recurso a instrumentos de direito privado.
Em
suma, a ideia a reter é, portanto, a da evolução das formas de actuação da
Administração ao longo da história e a constante procura de novas formas e
instrumentos de actuação mais eficazes.
Uma
destas novas formas de actuação administrativa prende-se com o recurso a
instrumentos de mercado, que constituem, nas palavras do jus-ambientalista
Tiago Antunes, um novo paradigma de intervenção, ou mesmo, desintervenção
Estadual[1].
A
introdução de muitos destes novos mecanismos de actuação da Administração
apresentam implicações, não só ao nível dos riscos como ao nível dos desafios
que nos colocam[2].
Centrando-nos
no nosso objecto de estudo, o mecanismo administrativo de que trataremos é o
que diz respeito ao comércio de licenças administrativas no domínio ambiental.
Pontos positivos e negativos
A
utilização deste tipo de mecanismos administrativos de mercado apresenta uma
grande virtualidade prima facie. Nas
palavras de autores como Tiago Antunes, estes mecanismos permitem “aligeirar a aplicação cega e rígida dos
critérios legais a que a Administração está vinculada no âmbito da concessão de
licenças ambientais e de autorizações de poluição”[3].
Seguindo ainda na linha do ensinamento do mesmo autor, “estes mecanismos reúnem o melhor de dois mundos, na medida em que, é um
instrumento que visa controlar a poluição de modo mais economicamente
vantajoso, mais eficiente e menos dispendioso possível”[4].
Na
sequência do Protocolo de Quioto e, tendo em vista o cumprimento dos objectivos
de redução de emissões poluentes, foi criado no Espaço Comunitário, um mercado
de poluição, que, concretiza, no fundo, a aplicação prática deste novo tipo de
instrumentos. Este regime, denominado CELE – Comércio Europeu de Licenças de
Emissão – entrou em vigor em Janeiro de 2005.
Em
traços largos, podemos dizer que este mercado funciona com base na admissão da
transacção de licenças administrativas autorizadoras de uma quantidade de
substâncias poluentes. No fundo, deixa de ser a Administração a ditar o onde e
o quanto se pode poluir, limitando-se a actuar através da distribuição quer a
título gratuito, quer a título oneroso de um determinado número de licenças de
emissão de substâncias poluentes, que podem ser objecto de posterior
negociação. Ora, como já atrás fomos fazendo referência, o busílis do regime
encontra-se nesta nova forma de actuação da Administração, uma vez que apesar
de o Estado manter um papel decisivo quanto à definição do montante total das
licenças que compõem o mercado, o montante de emissões poluentes que cada indústria
é autorizado a produzir, deixa de ser resultado de uma decisão por parte da
Administração, mas sim do livre encontro entre procura e oferta.
Quanto
aos fundamentos que conduziram à adopção deste tipo de mecanismos mercantis,
tem-se vindo a argumentar essencialmente com base em razões de eficiência
económica. Pegando na exemplificação dada por Tiago Antunes, verificamos que as
indústrias onde é mais fácil e mais económico aplicar técnicas de redução de
emissões poluentes, terão interesse em poluir menos para lucrarem com a venda
dos seus títulos de poluição. Por outro lado, as indústrias onde seja mais
onerosa essa redução de emissões preferirão continuar a poluir, comprando as
necessárias licenças.
Podemos
ainda apontar uma segunda vantagem, na medida em que, este tipo de instrumentos
cria uma espécie de incentivos permanentes à redução da poluição, pois não
havendo uma fixação unilateral de limites máximos de emissão, as empresas não
se bastarão com o respeito por esse tecto máximo, tendo interesse em não
exceder esses limites máximos, mas também em poluir o mínimo possível de forma
a poder lucrar com a venda dos títulos sobrantes[5].
Em suma, parece sedutor dizer, num
primeiro momento, que a actuação da Administração pode ser muito mais eficaz se
abdicar de uma postura de polícia, criando incentivos adequados para que se
possam atingir de forma livre e auto-determinada os objectivos pretendidos.
No entanto, se é certo que a introdução
destes mecanismos de intervenção apresentam virtualidades, não se pode descurar
de reflectir sobre as implicações e desafios que deles derivam. A primeira
dessa implicações prende-se com a fungibilidade das licenças administrativas,
ou seja, com a multiplicidade de sujeitos destinatários da mesma, em virtude da
sua livre negociabilidade. Desta forma, deixa de ser a Administração a ditar a
melhor forma de, no caso concreto, prosseguir o interesse público, confiando no
mercado como instrumento de realização destes mesmos fins. Isto porque os
sujeitos outrora “regulados”, regulam-se actualmente a si próprios, pois o
Estado deixa de determinar quem, quando, onde e em que circunstâncias podem
estas actividades poluentes ser realizadas.
Outro
dos riscos/desafios que instrumento de mercado nos coloca, é o facto de, no
mercado de emissões poluentes, serem distribuídas gratuitamente licenças de
emissão. Ora, tal situação, levanta-nos o seguinte problema, será admissível
esta distribuição de licenças a título gratuito em face do princípio do
poluidor-pagador?
Tal princípio, encontra, entre nós,
consagração ao nível constitucional (art.66º/2 h) CRP), bem como ao nível legal
através da transposição da Directiva 2004/35, de 21 de Abril de 2004.
Este princípio é, aqui, posto em causa,
na medida em que, não se está a seguir com a distribuição gratuita de licenças
a filosofia de internalização dos custos da poluição, uma vez que, deixa de
pertencer ao poluidor o ónus de suportar directamente as medidas preventivas ou
reparatórias. Consequentemente, o princípio do poluidor-pagador repele qualquer
tipo de ajuda ou subsídio por parte do Estado a estas actividades poluentes.
Nessa medida, autores como Lídice da Silva Xavier, consideram que o mercado de
emissões poluentes, resultaria inconstitucional à luz do art. 66º/2 h) CRP.
Na nossa opinião, aderimos aos
argumentos aduzidos, no entanto, há que atender à ratio da criação destas licenças gratuitas, uma vez que as mesmas,
foram necessárias para conseguir a adesão dos agentes económicos a este tipo de
mercado. E mais, estas licenças gratuitas têm vindo sucessivamente a diminuir
no seu número, com tendência para desaparecerem. Desta forma, concluímos que se
trata efectivamente de um desafio que o mercado de emissões poluentes coloca
mas, no entanto, é algo que, a prazo, será solucionado.
Mas se estes são uns dos problemas a
ter em linha de conta, de não menos importância é o problema da criação dos “guetos ecológicos” ou, por outras
palavras, dos conhecidos hot spots de
poluição, originados pela concentração espacial de licenças. Se é certo que ,
como oportunamente referimos, o ponto óptimo em termos económicos resulta da
ideia supra referida quanto à relação
de custo/benefício entre a redução da carga de poluição emitida e a venda de
títulos de emissão sobrantes, é também certo que este ponto óptimo nem sempre
coincide com a máxima optimização e utilização dos recursos naturais, visto que
a possibilidade de transacção de licenças numa lógica de mercado poderá
conduzir a uma distribuição assimétrica, em termos espaciais, das emissões
poluentes.
Este é, talvez, o maior problema que
pode advir da utilização deste instrumento de mercado como forma de combate à
poluição. Enquanto que os tradicionais instrumentos administrativos, como é o
caso das licenças, acautelam estes efeitos uma vez que na sua concessão são
tomados em linha de conta aspectos relacionados com o grau de saturação
ambiental numa dada localidade, permitindo que não seja excedido um determinado
patamar máximo de emissões, o sistema de cap
and trade não responde a este problema, deixando aos agentes de mercado a
decisão sobre a localização das suas indústrias, permitindo, consequentemente,
a concentração de emissões onde for mais vantajoso do ponto de vista económico,
ciando fenómenos de determinadas empresas que adquirem um elevado número de
quotas de poluição, concentrando numa única instalação industrial grandes
quantidades de emissão ou fenómenos de determinadas regiões onde se aglomeram
indústrias com um elevado nível de emissões poluentes.
Ora,
à primeira vista, olhando às virtualidades apresentadas pela introdução deste
instrumento de mercado, mas também aos riscos e problemas que comporta,
diríamos que seria melhor continuar a optar pelos instrumentos tradicionais de
actuação por parte da Administração.
Cabe,
agora, indagar sobre possíveis mecanismos que mitiguem este problema. Seguindo
o ensinamento de Tiago Antunes, deve “limitar-se
o comércio de quotas de poluição sempre que este seja susceptível de produzir
impactes locais significativos, deteriorando de forma incomportável as
condições ecológicas ou ambientais verificadas”. Não tomando tais medidas
de limitação ocorreria uma violação dos princípios constitucionais da prevenção
e do aproveitamento racional dos recursos naturais (art.66º/2 a) e d) CRP).
Continuando
na senda do mesmo autor, poderíamos procurar possíveis formas de
limitação/mitigação deste efeito.
Uma
dessas pretensas formas de combater a irracionalidade na distribuição espacial
da poluição seria aproveitar a ideia de “suplementariedade” que resulta do
próprio protocolo de Quioto. Isto é, estabelecendo o protocolo de Quito que o
comércio internacional de emissões poluentes deve ser suplementar face aos
esforços de redução efectiva da poluição, pode retirar-se daqui a ideia de que
esta “suplementariedade” se deveria concretizar através de tectos de emissão
que não pudessem ser transaccionados.
Ora,
esta forma de combate ao fenómeno da irracionalidade na distribuição espacial
da poluição não atinge tal objectivo. Para chegar a tal conclusão basta pensar
que uma limitação em abstracto de transacção de licenças de emissão não evita
uma concentração local das licenças susceptíveis de serem trasaccionadas.
Podemos
ainda procurar solução para este problema na Directiva 2003/87/CE. Ela vem
responder a este problema. Isto porque, à criação dos guetos ecológicos está
associada a incompatibilidade resultante da articulação entre a criação de um
mercado de emissões poluentes por um lado e da existência de um regime jurídico
de licença ambiental que define os máximos de substâncias poluentes que cada
indústria pode emitir, por outro lado.
Ou
seja, este sistema do regime jurídico da licença ambiental, fixando estes
“valores limite” de emissão não se coaduna com o comércio de emissões
poluentes, uma vez que destrói a liberdade que os agentes económicos têm para
transaccionar as suas licenças da forma que considerem mais vantajosa.
Por
outro lado, se verificamos que a existência destes “valores-limite” de emissão
põem em causa o funcionamento deste mercado, também é verdade que a eliminação
de todas as barreiras à livre transacção das licenças de emissão resultarão
inevitavelmente no surgimento destes guetos ecológicos.
Cabe,
perante este dilema verificar que soluções tomar. O mecanismo seguido pela
Directiva comunitária vai no sentido de compatibilizar estas duas vertentes em
jogo. A solução encontrada é a que consta do art. 26º, “a licença não deve
incluir um valor limite de emissão aplicável às emissões directas desse gás, a
menos que, se torne necessário assegurar que não será causada qualquer poluição
local significativa”, ou seja, o valor limite de emissão previsto na licença
ambiental só se aplica quando a aquisição de licenças de emissão possa provocar
um impacte local significativo. Ao nível do direito interno, veja-se a
transposição da Directiva, vertida no Decreto Lei 127/2013 de 30 de Agosto,
cujo seu art.24º/1 propõe a mesma solução, ou seja, a VLE aplica-se às emissões
das instalações que desenvolvam actividades abrangidas pelo regime do comercio
europeu de licenças de emissão, salvo nos casos em que for necessário assegurar
que não é causada qualquer poluição local significativa.
Em
suma, esta solução parece bastante adequada porque só assim se salvaguarda o
combate da poluição a um nível micro, evitando a concentração espacial da
poluição, permitindo que o combate se continue a fazer a um nível macro,
através da fixação de tectos globais máximos. Perante a necessidade de
compatibilização a solução fornecida pela Directiva opera uma restrição
selectiva, ou seja, o limite da licença ambiental só operará nos casos de
acumulação excessiva de licenças de emissão. Nas palavras de Tiago Antunes,
evita-se a criação de guetos ambientais beliscando no mínimo possível o
funcionamento do mercado de emissões poluentes.
Breve conclusão
Depois
de tudo o que foi exposto, cabe dedicar algumas considerações sobre o tema.
Ora, verificamos que a existência deste tipo de mecanismos de actuação por
parte da Administração vem responder à insuficiência dos instrumentos
tradicionais, em face dos novos problemas ambientais. Desta forma, parece ser
benéfica a adopção de mecanismos como o do mercado de emissões poluentes,
permitindo este, uma limitação a nível macro das emissões poluentes, sem
contudo por em causa o livre desenvolvimento económico. Ora, é também certo
que, este mercado não está isento de riscos.
O
que se procurou fazer foi, no fundo, apurar se pesados os prós e os contras,
devem ou não ser adoptados estes mecanismos de actuação.
Bibliografia:
Carla Amado Gomes “Introdução ao Direito do Ambiente”, 2ª Edição, AAFDL, 2014
Heloísa Oliveira “Contributo para uma análise económica do Protocolo de Quioto. Em
especial, o comérico de licenças de emissões”, Relatório de Mestrado,
2008/2009, Faculdade de Direito de Lisboa
Lídice da Silva Xavier “Comércio de emissões poluentes”, Tese de
Mestrado Cientifico, 2009/2010, Faculdade de Direito de Lisboa
Tiago Antunes “Agilizar ou mercantilizar? O recurso a instrumentos de mercado pela
Administração Pública – implicações e consequências”, Estudos em homenagem
ao Professor António de Sousa Franco, Coimbra Editora, 2006
Tiago Antunes “O Comércio de Emissões Poluentes à luz da Constituição da república
Portuguesa”, AAFDL, 2006
[1] TIAGO
ANTUNES, “Agilizar ou mercantilizar?
O recurso a instrumentos de mercado pela Administração Pública – Implicações e
consequências”, pp.1060
[2]
Sobre a evolução das experiências de regulação ambiental por via do recurso a
instrumentos de mercado, vide TIAGO ANTUNES, “Agilizar ...”. Como refere o autor, a utilização destes mecanismos
ao nível ambiental teve a sua génese nos E.U.A. no início dos anos 70 com a Environmental Protection Agency a dar
início a um programa de comércio de emissões, que acabou por funcionar como
tubo de ensaio para o surgimento deste tipo de mecanismos a nível global.
[4] TIAGO ANTUNES, “O Comércio de Emissões Poluentes à luz da Constituição da República
Portuguesa”, pp.34
[5] TIAGO ANTUNES, “O comércio…”, pp 31 e ss. Considerando que desta forma deixam de
existir limites absolutos aos esforços de redução da poluição, uma vez que todos
os esforços são economicamente recompensados.
João Camilo, nº20865
Visto.
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