sábado, 3 de maio de 2014

Os instrumentos de mercado como forma de combate à poluição: o comércio de emissões poluentes. Pontos positivos e negativos


Uma nova forma de actuação

            Temos vindo a assistir a uma evolução no paradigma de actuação da Administração ao longo dos tempos. Num primeiro momento, associado à fase do Estado Liberal, o Estado limitava-se ao mínimo indispensável de actuação, a Administração caracterizava-se pelo seu comportamento de polícia, ora numa vertente preventiva, através de autorizações e licenças, ora numa vertente repressiva, através de sanções administrativas e contra-ordenações.
            Posteriormente, com o surgimento do Estado Social de Direito, passámos a ter uma Administração prestadora e consequentemente verificámos uma alteração ao nível das formas de actuação pelas quais a Administração se começou a pautar.
            Actualmente fala-se na existência de uma terceira fase, designada de Administração prospectiva, ligada à ideia de um Estado Pós-Social em que o Estado deixa de intervir tanto ao nível prestacional, envolvendo-se de forma mais acentuada na criação de infra-estruturas para que os objectivos possam ser prosseguidos. Ao nível dos instrumentos a que esta Administração prospectiva deita mão, cabe referenciar o crescente recurso a instrumentos de direito privado.
            Em suma, a ideia a reter é, portanto, a da evolução das formas de actuação da Administração ao longo da história e a constante procura de novas formas e instrumentos de actuação mais eficazes.
            Uma destas novas formas de actuação administrativa prende-se com o recurso a instrumentos de mercado, que constituem, nas palavras do jus-ambientalista Tiago Antunes, um novo paradigma de intervenção, ou mesmo, desintervenção Estadual[1].
            A introdução de muitos destes novos mecanismos de actuação da Administração apresentam implicações, não só ao nível dos riscos como ao nível dos desafios que nos colocam[2].
            Centrando-nos no nosso objecto de estudo, o mecanismo administrativo de que trataremos é o que diz respeito ao comércio de licenças administrativas no domínio ambiental.


Pontos positivos e negativos

            A utilização deste tipo de mecanismos administrativos de mercado apresenta uma grande virtualidade prima facie. Nas palavras de autores como Tiago Antunes, estes mecanismos permitem “aligeirar a aplicação cega e rígida dos critérios legais a que a Administração está vinculada no âmbito da concessão de licenças ambientais e de autorizações de poluição[3]. Seguindo ainda na linha do ensinamento do mesmo autor, “estes mecanismos reúnem o melhor de dois mundos, na medida em que, é um instrumento que visa controlar a poluição de modo mais economicamente vantajoso, mais eficiente e menos dispendioso possível[4].
            Na sequência do Protocolo de Quioto e, tendo em vista o cumprimento dos objectivos de redução de emissões poluentes, foi criado no Espaço Comunitário, um mercado de poluição, que, concretiza, no fundo, a aplicação prática deste novo tipo de instrumentos. Este regime, denominado CELE – Comércio Europeu de Licenças de Emissão – entrou em vigor em Janeiro de 2005.
            Em traços largos, podemos dizer que este mercado funciona com base na admissão da transacção de licenças administrativas autorizadoras de uma quantidade de substâncias poluentes. No fundo, deixa de ser a Administração a ditar o onde e o quanto se pode poluir, limitando-se a actuar através da distribuição quer a título gratuito, quer a título oneroso de um determinado número de licenças de emissão de substâncias poluentes, que podem ser objecto de posterior negociação. Ora, como já atrás fomos fazendo referência, o busílis do regime encontra-se nesta nova forma de actuação da Administração, uma vez que apesar de o Estado manter um papel decisivo quanto à definição do montante total das licenças que compõem o mercado, o montante de emissões poluentes que cada indústria é autorizado a produzir, deixa de ser resultado de uma decisão por parte da Administração, mas sim do livre encontro entre procura e oferta.
            Quanto aos fundamentos que conduziram à adopção deste tipo de mecanismos mercantis, tem-se vindo a argumentar essencialmente com base em razões de eficiência económica. Pegando na exemplificação dada por Tiago Antunes, verificamos que as indústrias onde é mais fácil e mais económico aplicar técnicas de redução de emissões poluentes, terão interesse em poluir menos para lucrarem com a venda dos seus títulos de poluição. Por outro lado, as indústrias onde seja mais onerosa essa redução de emissões preferirão continuar a poluir, comprando as necessárias licenças.
            Podemos ainda apontar uma segunda vantagem, na medida em que, este tipo de instrumentos cria uma espécie de incentivos permanentes à redução da poluição, pois não havendo uma fixação unilateral de limites máximos de emissão, as empresas não se bastarão com o respeito por esse tecto máximo, tendo interesse em não exceder esses limites máximos, mas também em poluir o mínimo possível de forma a poder lucrar com a venda dos títulos sobrantes[5].
Em suma, parece sedutor dizer, num primeiro momento, que a actuação da Administração pode ser muito mais eficaz se abdicar de uma postura de polícia, criando incentivos adequados para que se possam atingir de forma livre e auto-determinada os objectivos pretendidos.
No entanto, se é certo que a introdução destes mecanismos de intervenção apresentam virtualidades, não se pode descurar de reflectir sobre as implicações e desafios que deles derivam. A primeira dessa implicações prende-se com a fungibilidade das licenças administrativas, ou seja, com a multiplicidade de sujeitos destinatários da mesma, em virtude da sua livre negociabilidade. Desta forma, deixa de ser a Administração a ditar a melhor forma de, no caso concreto, prosseguir o interesse público, confiando no mercado como instrumento de realização destes mesmos fins. Isto porque os sujeitos outrora “regulados”, regulam-se actualmente a si próprios, pois o Estado deixa de determinar quem, quando, onde e em que circunstâncias podem estas actividades poluentes ser realizadas.
            Outro dos riscos/desafios que instrumento de mercado nos coloca, é o facto de, no mercado de emissões poluentes, serem distribuídas gratuitamente licenças de emissão. Ora, tal situação, levanta-nos o seguinte problema, será admissível esta distribuição de licenças a título gratuito em face do princípio do poluidor-pagador?
Tal princípio, encontra, entre nós, consagração ao nível constitucional (art.66º/2 h) CRP), bem como ao nível legal através da transposição da Directiva 2004/35, de 21 de Abril de 2004.
Este princípio é, aqui, posto em causa, na medida em que, não se está a seguir com a distribuição gratuita de licenças a filosofia de internalização dos custos da poluição, uma vez que, deixa de pertencer ao poluidor o ónus de suportar directamente as medidas preventivas ou reparatórias. Consequentemente, o princípio do poluidor-pagador repele qualquer tipo de ajuda ou subsídio por parte do Estado a estas actividades poluentes. Nessa medida, autores como Lídice da Silva Xavier, consideram que o mercado de emissões poluentes, resultaria inconstitucional à luz do art. 66º/2 h) CRP.
Na nossa opinião, aderimos aos argumentos aduzidos, no entanto, há que atender à ratio da criação destas licenças gratuitas, uma vez que as mesmas, foram necessárias para conseguir a adesão dos agentes económicos a este tipo de mercado. E mais, estas licenças gratuitas têm vindo sucessivamente a diminuir no seu número, com tendência para desaparecerem. Desta forma, concluímos que se trata efectivamente de um desafio que o mercado de emissões poluentes coloca mas, no entanto, é algo que, a prazo, será solucionado.
Mas se estes são uns dos problemas a ter em linha de conta, de não menos importância é o problema da criação dos “guetos ecológicos” ou, por outras palavras, dos conhecidos hot spots de poluição, originados pela concentração espacial de licenças. Se é certo que , como oportunamente referimos, o ponto óptimo em termos económicos resulta da ideia supra referida quanto à relação de custo/benefício entre a redução da carga de poluição emitida e a venda de títulos de emissão sobrantes, é também certo que este ponto óptimo nem sempre coincide com a máxima optimização e utilização dos recursos naturais, visto que a possibilidade de transacção de licenças numa lógica de mercado poderá conduzir a uma distribuição assimétrica, em termos espaciais, das emissões poluentes.
Este é, talvez, o maior problema que pode advir da utilização deste instrumento de mercado como forma de combate à poluição. Enquanto que os tradicionais instrumentos administrativos, como é o caso das licenças, acautelam estes efeitos uma vez que na sua concessão são tomados em linha de conta aspectos relacionados com o grau de saturação ambiental numa dada localidade, permitindo que não seja excedido um determinado patamar máximo de emissões, o sistema de cap and trade não responde a este problema, deixando aos agentes de mercado a decisão sobre a localização das suas indústrias, permitindo, consequentemente, a concentração de emissões onde for mais vantajoso do ponto de vista económico, ciando fenómenos de determinadas empresas que adquirem um elevado número de quotas de poluição, concentrando numa única instalação industrial grandes quantidades de emissão ou fenómenos de determinadas regiões onde se aglomeram indústrias com um elevado nível de emissões poluentes.
            Ora, à primeira vista, olhando às virtualidades apresentadas pela introdução deste instrumento de mercado, mas também aos riscos e problemas que comporta, diríamos que seria melhor continuar a optar pelos instrumentos tradicionais de actuação por parte da Administração.
            Cabe, agora, indagar sobre possíveis mecanismos que mitiguem este problema. Seguindo o ensinamento de Tiago Antunes, deve “limitar-se o comércio de quotas de poluição sempre que este seja susceptível de produzir impactes locais significativos, deteriorando de forma incomportável as condições ecológicas ou ambientais verificadas”. Não tomando tais medidas de limitação ocorreria uma violação dos princípios constitucionais da prevenção e do aproveitamento racional dos recursos naturais (art.66º/2 a) e d) CRP).
            Continuando na senda do mesmo autor, poderíamos procurar possíveis formas de limitação/mitigação deste efeito.
            Uma dessas pretensas formas de combater a irracionalidade na distribuição espacial da poluição seria aproveitar a ideia de “suplementariedade” que resulta do próprio protocolo de Quioto. Isto é, estabelecendo o protocolo de Quito que o comércio internacional de emissões poluentes deve ser suplementar face aos esforços de redução efectiva da poluição, pode retirar-se daqui a ideia de que esta “suplementariedade” se deveria concretizar através de tectos de emissão que não pudessem ser transaccionados.
            Ora, esta forma de combate ao fenómeno da irracionalidade na distribuição espacial da poluição não atinge tal objectivo. Para chegar a tal conclusão basta pensar que uma limitação em abstracto de transacção de licenças de emissão não evita uma concentração local das licenças susceptíveis de serem trasaccionadas.
            Podemos ainda procurar solução para este problema na Directiva 2003/87/CE. Ela vem responder a este problema. Isto porque, à criação dos guetos ecológicos está associada a incompatibilidade resultante da articulação entre a criação de um mercado de emissões poluentes por um lado e da existência de um regime jurídico de licença ambiental que define os máximos de substâncias poluentes que cada indústria pode emitir, por outro lado.
            Ou seja, este sistema do regime jurídico da licença ambiental, fixando estes “valores limite” de emissão não se coaduna com o comércio de emissões poluentes, uma vez que destrói a liberdade que os agentes económicos têm para transaccionar as suas licenças da forma que considerem mais vantajosa.
            Por outro lado, se verificamos que a existência destes “valores-limite” de emissão põem em causa o funcionamento deste mercado, também é verdade que a eliminação de todas as barreiras à livre transacção das licenças de emissão resultarão inevitavelmente no surgimento destes guetos ecológicos.
            Cabe, perante este dilema verificar que soluções tomar. O mecanismo seguido pela Directiva comunitária vai no sentido de compatibilizar estas duas vertentes em jogo. A solução encontrada é a que consta do art. 26º, “a licença não deve incluir um valor limite de emissão aplicável às emissões directas desse gás, a menos que, se torne necessário assegurar que não será causada qualquer poluição local significativa”, ou seja, o valor limite de emissão previsto na licença ambiental só se aplica quando a aquisição de licenças de emissão possa provocar um impacte local significativo. Ao nível do direito interno, veja-se a transposição da Directiva, vertida no Decreto Lei 127/2013 de 30 de Agosto, cujo seu art.24º/1 propõe a mesma solução, ou seja, a VLE aplica-se às emissões das instalações que desenvolvam actividades abrangidas pelo regime do comercio europeu de licenças de emissão, salvo nos casos em que for necessário assegurar que não é causada qualquer poluição local significativa.
            Em suma, esta solução parece bastante adequada porque só assim se salvaguarda o combate da poluição a um nível micro, evitando a concentração espacial da poluição, permitindo que o combate se continue a fazer a um nível macro, através da fixação de tectos globais máximos. Perante a necessidade de compatibilização a solução fornecida pela Directiva opera uma restrição selectiva, ou seja, o limite da licença ambiental só operará nos casos de acumulação excessiva de licenças de emissão. Nas palavras de Tiago Antunes, evita-se a criação de guetos ambientais beliscando no mínimo possível o funcionamento do mercado de emissões poluentes.

Breve conclusão

            Depois de tudo o que foi exposto, cabe dedicar algumas considerações sobre o tema. Ora, verificamos que a existência deste tipo de mecanismos de actuação por parte da Administração vem responder à insuficiência dos instrumentos tradicionais, em face dos novos problemas ambientais. Desta forma, parece ser benéfica a adopção de mecanismos como o do mercado de emissões poluentes, permitindo este, uma limitação a nível macro das emissões poluentes, sem contudo por em causa o livre desenvolvimento económico. Ora, é também certo que, este mercado não está isento de riscos.
            O que se procurou fazer foi, no fundo, apurar se pesados os prós e os contras, devem ou não ser adoptados estes mecanismos de actuação.


Bibliografia:
Carla Amado Gomes “Introdução ao Direito do Ambiente”, 2ª Edição, AAFDL, 2014
Heloísa Oliveira “Contributo para uma análise económica do Protocolo de Quioto. Em especial, o comérico de licenças de emissões”, Relatório de Mestrado, 2008/2009, Faculdade de Direito de Lisboa
Lídice da Silva Xavier “Comércio de emissões poluentes”, Tese de Mestrado Cientifico, 2009/2010, Faculdade de Direito de Lisboa
Tiago Antunes “Agilizar ou mercantilizar? O recurso a instrumentos de mercado pela Administração Pública – implicações e consequências”, Estudos em homenagem ao Professor António de Sousa Franco, Coimbra Editora, 2006
Tiago Antunes “O Comércio de Emissões Poluentes à luz da Constituição da república Portuguesa”, AAFDL, 2006




[1] TIAGO ANTUNES, “Agilizar ou mercantilizar? O recurso a instrumentos de mercado pela Administração Pública – Implicações e consequências”, pp.1060
[2] Sobre a evolução das experiências de regulação ambiental por via do recurso a instrumentos de mercado, vide TIAGO ANTUNES, “Agilizar ...”. Como refere o autor, a utilização destes mecanismos ao nível ambiental teve a sua génese nos E.U.A. no início dos anos 70 com a Environmental Protection Agency a dar início a um programa de comércio de emissões, que acabou por funcionar como tubo de ensaio para o surgimento deste tipo de mecanismos a nível global.
[3] TIAGO ANTUNES, “Agilizar , pp.1062
[4] TIAGO ANTUNES, “O Comércio de Emissões Poluentes à luz da Constituição da República Portuguesa”, pp.34
[5] TIAGO ANTUNES, “O comércio…”, pp 31 e ss. Considerando que desta forma deixam de existir limites absolutos aos esforços de redução da poluição, uma vez que todos os esforços são economicamente recompensados.



João Camilo, nº20865

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