i. O objetivo deste trabalho é analisar o direito ao ambiente, previsto no
artigo 66º/1 da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP), com o
intuito de descobrir a sua natureza jurídica, isto é, saber se estamos perante
um direito social, como parece
decorrer da sua integração sistemática, ou se estamos perante um direito fundamental de natureza análoga aos
direitos de liberdade. Trataremos apenas desta questão; outras, como a
análise do dever fundamental de proteção do ambiente não serão aqui exploradas[1].
ii. A Constituição da República Portuguesa separa os direitos fundamentais em
duas grandes áreas: os direitos,
liberdades e garantias (Parte I, Título II) e os direitos económicos, sociais e culturais (Parte I, Título III). Esta
distinção específica existente no nosso Direito não tem um relevo meramente
descritivo, mas essencialmente de regime[2], visto
que a lei guarda para os primeiros um regime especial – reforçado – face aos
restantes. Consequentemente, com a mera consagração formal de um determinado
direito num destes dois Títulos, o seu regime jurídico seria distinto.
Procurando evitar a inadequação que este critério formal pode gerar, o
legislador constituinte estabeleceu no art. 17º da CRP uma extensão de regime
aos direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias da regulação que
estes últimos possuem, admitindo, assim, que a separação entre os direitos
fundamentais não é estanque. A qualificação de um determinado direito
fundamental depende, a partir daqui, não só de um critério formal, mas antes de
um critério verdadeiramente material – isto é, o seu conteúdo enquanto direito fundamental.
Posto isto, o primeiro passo a cumprir passa por determinar os critérios
aplicáveis na qualificação de um determinado direito fundamental como direito de liberdade ou direito social. Neste ponto, a doutrina tem oferecido várias possibilidades: José de Melo Alexandrino utiliza três
critérios: a) o direito tem que possuir um nível elevado de fundamentalidade
material para ser um direito de liberdade;
b) o seu conteúdo tem que estar determinado na Constituição; c) tem de servir o
estatuto básico da pessoa humana na sua relação com o Estado.[3]. Já
para Vieira de Andrade[4],
para aferirmos se estamos perante um direito
de liberdade: a) também temos de
recorrer ao critério da determinabilidade do conteúdo ao nível das opções; b) bem
como ter subjacente um radical subjectivo
inerente à pessoa humana. Já para Gomes Canotilho[5]
os direitos de liberdade: a) têm como
principal função uma função de defesa;
b) são, em regra, direitos negativos;
c) o seu conteúdo está determinado constitucionalmente e; d) a comparação entre
o direito análogo e os direitos, liberdades
e garantias procede-se comparando com cada espécie (pessoais, de participação
política, dos trabalhadores).
Na esteira de Reis Novais,
entendemos, por fim, seguir um critério combinado entre a diferente
determinabilidade de conteúdo constitucional dos direitos em questão e a
diferente natureza dos deveres do Estado envolvidos[6].
Em suma, pensamos que os critérios fundamentais de distinção dos direitos de liberdade face aos direitos sociais são, por um lado, a
determinabilidade ao nível constitucional do seu conteúdo, mas também a
natureza das imposições dirigidas ao Estado por parte da norma fundamental, isto
é, se tem uma obrigação directa e imediata de agir, não estando dependente de
valorações politicas e financeiras. Caso estes critérios estejam presentes,
estaremos perante um direito de liberdade;
caso contrário, será antes um direito
social.
iii. Antes de entrarmos finalmente na temática da natureza
jurídica do direito ao ambiente, cumpre salientar o seguinte: cada norma de
direito fundamental atribui a uma pessoa várias situações jurídicas ativas[7].
A análise da natureza jurídica tem de recair analiticamente sobre cada uma
dessas situações jurídicas ativas. O
que significa que, embora se considere normalmente o direito fundamental como um todo[8]
(na sua dimensão principal), é imperioso olhar mais atentamente para aquele
direito fundamental, e descobrir qual a sua faceta que está em causa no caso
concreto[9]. Na
maior parte das vezes, um determinado direito fundamental, que embora observado
compreensivamente aparente uma natureza
jurídica unitária, quando é analisado em termos analíticos descobre-se
possuir dimensões de ambas as naturezas, tanto é um direito de liberdade, como um direito
social.
iv. Entrando
agora, em especial, no direito fundamental ao ambiente, pensamos que podemos
distinguir várias dimensões:
a)
Direito de
defesa: a imposição ao Estado de omissão de determinadas intervenções danosas;
b)
Direito a prestações: exigência
ao Estado de promoção de melhorias ambientais por via de medidas fáticas e
jurídicas;
c)
Direito de
procedimento: em que se permita ao particular ofendido no seu
direito a possibilidade de defesa do mesmo em processos ambientais;
d)
Direito à
proteção: obrigação imposta ao Estado de proteção dos direitos subjectivos dos
particulares face a intervenções nocivas ao ambiente, nomeadamente de
terceiros.
Em relação ao direito de defesa a doutrina é unânime ao considerar que este é um direito fundamental análogo[10]. Em primeiro lugar, os direitos de
defesa são os mais tradicionais do elenco dos direitos, liberdades e garantias; em segundo lugar, o seu conteúdo
está claramente determinado na Constituição; por último, não estão dependentes
de prestações estaduais, não estando assim sujeitos a nenhuma reserva.
O direito de procedimento também deve ser considerado como direito fundamental análogo. Recorrendo
aos ensinamentos de Carla Amado Gomes[11], podemos retirar do direito ao ambiente
vários direitos procedimentais, os quais se traduzem, tanto na participação nos
procedimentos autorizativos ambientais (art. 267º/5 da CRP), como na
propositura de ações judiciais com vista à salvaguarda da integridade dos bens
naturais [ação popular; art. 52º/3,
alínea a) da CRP], bem como na possibilidade de aceder a
informações relativas a questões ambientais (art. 268º/1 da CRP).
O direito de
ação popular está inserido no título dos direitos, liberdades e garantias e é uma emanação da regra geral do
direito de acesso aos tribunais (art. 20º/1 da CRP), sendo claramente um direito análogo aos direitos de liberdade.
Relativamente aos outros dois aspectos referidos pela A., o problema não é
específico do direito ao ambiente, pois são normas previstas para a organização
e funcionamento da Administração Pública em geral, sendo consideradas pela
doutrina como verdadeiros direitos
fundamentais análogos.
Tomemos em consideração agora as restantes duas dimensões
do direito ao ambiente. Em termos estruturais estamos perante direitos positivos, que exigem acções do
Estado, tanto no sentido de proteção relativamente a lesões provindas de
terceiros (direito a proteção), como
no sentido de promoção da qualidade do meio ambiente (direito a prestações). Deste modo, e seguindo o critério do
carácter negativo/positivo do direito, estes aproximam-se dos chamados direitos sociais. No entanto, outros
critérios devem ser tidos em conta. Em primeiro lugar, ambos os direitos não têm o seu conteúdo determinado na
Constituição, não sendo possível definir – a
priori –¸ quais as medidas de protecção ou medidas de promoção a que o Estado está
obrigado; Em segundo lugar, em ambos os direitos se encontra uma limitação à reserva do possível, estando o Estado
confinado na sua prossecução pelos escassos
recursos financeiros. Assim, a conclusão a que chegamos é que estes são
verdadeiros direitos sociais.
Neste sentido pronunciou-se já Vasco Pereira da Silva, que considera que “ao direito ao ambiente é de aplicar o regime
jurídico dos direitos, liberdades e garantias, na medida da sua dimensão
negativa, e o regime jurídico dos direitos, económicos, sociais e culturais, na
medida da sua dimensão positiva”[12].
v. Embora o princípio seja o enunciado, alguma doutrina considera que, por
vezes, os direitos sociais podem funcionar como verdadeiros direitos de liberdade. Considera-se que
existe um minímo vital que a norma enunciativa
consagra sempre, mínimo esse que não está dependente da vontade do Estado[13]. É Gomes Canotilho[14]
quem parece aplicar esta
tese mais especialmente ao direito ao ambiente, nomeadamente na sua vertente de
direito a protecção, considerando que,
em situações extremas, os particulares terão um direito imediatamente
aplicável. Seguindo este entendimento, seria possível sustentar que nas duas vertentes
em análise do direito ao ambiente (direito
a protecção e direito a prestações)
haveria um direito fundamental de
natureza análoga na medida em que estes visassem garantir o mínimo vital do
direito.
Anabela Frutuoso (Aluna nº 21045)
[1] Área para o qual a doutrina se tende a
orientar mais frequentemente, hoje em dia, como nota José J. Gomes Canotilho, O
Direito ao Ambiente como direito subjectivo, in Estudos sobre Direitos
Fundamentais, 2ª ed., 2008, p. 178.
[2] A verdade é que, tal afirmação não deixa de
ser um pouco circular. Em bom rigor,
aqui, como em todo o Direito, a natureza de um direito (bem como de qualquer
actuação jurídica…) depende necessariamente do regime que lhe é aplicável pela
ordem jurídica. Assim, o regime precede a qualificação do bem ou acto jurídico,
e não o contrário.
[3] José de Melo Alexandrino, Direitos Fundamentais: Introdução Geral,
2ª ed., Principia, Lisboa, 2011, pp. 51-52.
[4] Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5ª
ed., Almedina, Coimbra, 2012, p. 176.
[5] J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Almedina,
Coimbra, 2003, pp. 398-402 e 405-406.
[6] Jorge Reis Novais, Direitos Sociais - Teoria jurídica dos direitos sociais enquanto
direitos fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 344-345.
[7] Pensemos, por exemplo, no direito
fundamental à vida, que permite ao seu titular exigir do Estado: (1) uma
conduta de não ingerência, de não violação do seu direito - direito de defesa; mas também lhe
permite exigir do Estado acções positivas de promoção e de defesa do direito à vida - direito a prestações.
[8] Sobre a noção direito fundamental como um todo, ver Jorge Reis Novais, As Restrições aos Direitos Fundamentais não
Expressamente Autorizadas pela Constituição,
2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 128-133.
[9] Embora o legislador constituinte já o tenha
feito expressamente em alguns casos, como no caso do direito ao ensino, estando
a liberdade de ensinar e aprender no art. 43º, mas o direito social ao ensino
no art. 74º.
[10] Como nota Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do
Ambiente, Almedina, Coimbra, 2002, p. 89.
[11] Carla Amado Gomes, Introdução ao Direito do Ambiente, 1ª ed., AAFDL, Lisboa, 2012, pp.
34 e ss.
[12] Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito, p. 103.
[13] Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais, pp. 146-147.
[14] J. J. Gomes Canotilho, O direito ao ambiente, pp. 188-189.
Visto.
ResponderEliminar