sexta-feira, 2 de maio de 2014

Das melhores técnicas disponíveis



O facto de a Administração dos nossos dias, marcadamente burocrática, pesada e pouco ágil, não lograr atender, cabal e atempadamente, aos desafios de uma Ciência cada vez mais criativa, dinâmica e veloz, levou à necessidade de encontrar outros mecanismos, diferentes dos standards[1], que nunca se deixem ultrapassar pela Técnica[2]. Entre esses mecanismos, destaca-se a cláusula melhores técnicas disponíveis, doravante designada por MTDs. Ao abrigo do artigo 31º, nº 1, do Decreto-Lei nº 127/2013, de 30 de Agosto - diploma que institui o Regime das Emissões Industriais (REI) - as MTDs “correspondem à fase de desenvolvimento mais avançada e eficaz das actividades e dos respectivos modos de exploração, que demonstre a aptidão prática de técnicas específicas para constituírem a base dos valores-limite de emissão e de outras condições de licenciamento, com vista a evitar e, quando tal não seja possível, a reduzir as emissões e o impacte no ambiente no seu todo”. Nas palavras do Professor COLAÇO ANTUNES, estas servem para superar o risco de deformar excessivamente as categorias técnicas e a sua mumificação, impedindo os processos decisionais de utilizar as mais recentes e sofisticadas aquisições técnico-científicas[3].
Também conhecidas como cláusulas de progresso científico, as MTDs constituem um instituto de raízes anglo-saxónicas, que surgiu, precisamente no domínio do Ambiente, para fazer face à necessidade premente de adaptação tecnológica dos focos poluentes. O critério da adopção dos best practicable means (BPM) encontra-se vigente no ordenamento britânico desde o Clean Air Act de 1956, apesar de já aí ser conhecido, de forma não codificada, desde o século passado. Nos Estados Unidos da América, o Clean Air Act emprega duas expressões diferentes: best available control technologie (BACT) – tecnologia que proporciona a mais elevada redução de poluição, prescindindo de considerações de optimização económica – e best practicable control technologie (BPCT) – tecnologia que consegue a maior redução das emissões poluentes, tendo em conta o perfil técnico e económico. Na Alemanha, tais fórmulas aparecem, de forma inovadora, no Código Geral Prussiano, de 1794, o qual contempla as regras e técnicas de construção comummente admitidas. Actualmente, as MTDs vigoram em numerosos países europeus graças à transposição do Direito da União Europeia[4].
No ordenamento jurídico português, a primeira tentativa de implementação de mecanismos idóneos a lidar com o fenómeno do risco ambiental transparece na Lei de Bases do Ambiente, traduzida em padrões de referência e valores-limite, aos quais aludia a alínea f), do nº 1, do artigo 27º, preceito que deveria ser complementado através da emissão de legislação e regulamentação ulterior (artigo 51º). A exigência de adaptação às MTDs propriamente dita só é introduzida em 2000, pelo Decreto-Lei nº 194/2000, de 21 de Agosto. Até aí, o propósito de adaptação ao progresso técnico em nome da segurança e da saúde não era, porém, estranho à prática administrativa: logo no início do século XX, o Supremo Tribunal Administrativo manifestou, em três casos, esta preocupação, veiculada por pareceres de delegados de saúde pública em procedimentos autorizativos de instalações insalubres e perigosas. Tal demonstra que a falta de previsão legal da necessidade de actualização das condições de funcionamento, com vista ao progresso técnico e à protecção de interesses públicos como a segurança e a saúde, não impedia que, a título de cláusulas modais e de forma casuística, tal desígnio fosse salvaguardado[5].
As MTDs exprimem o compromisso entre o imperativo de antecipação de riscos e a necessidade de manter um determinado nível de crescimento económico, maxime, no que tange ao desenvolvimento industrial. Através delas, é exigida ao operador a utilização na sua instalação das inovações técnicas mais recentes e avançadas no sentido da eliminação ou atenuação da poluição, mas não ao ponto de se imporem bitolas de prevenção tão elevadas e onerosas que o asfixiem[6]. Nem poderia ser de maneira distinta: as imposições técnicas são fruto de um trabalho de investigação científica constante no campo da minimização dos riscos inerentes aos vários sectores de actividades perigosas. Neste sentido, quem se propõe exercê-las, delas extraindo benefícios financeiros, deve suportar os deveres de prevenção do risco, servindo-se das melhores técnicas para o sector existentes no mercado, não sendo toleráveis, à partida, desvios fundados na incapacidade económica[7]. Concretiza-se, assim, um princípio de proibição sob reserva de permissão: ao particular é vedada a possibilidade de emitir poluição proveniente da exploração de determinadas actividades industriais para o ar, água e solo, sem se munir previamente de um acto administrativo conformador dos limites desse desgaste, que é a licença ambiental[8]. Elemento indispensável das políticas públicas de prevenção e combate integrado à poluição, a licença ambiental, ao determinar o estabelecimento de medidas destinadas a evitar ou, pelo menos, minorar as emissões de poluentes, representa a coroação de diversos impulsos constitucionais e comunitários, com várias décadas de evolução[9].
Uma vez que esta cláusula se afigura como uma cláusula geral ou um conceito aberto que remete permanentemente para o estado actual da Técnica, quando o legislador dela se socorre, consegue que a lei nunca se desactualize, situando-se sempre na vanguarda do desenvolvimento tecnológico. A norma permanece sempre a mesma, mas o parâmetro científico para que ela remete vai-se actualizando automática e instantaneamente[10]. Com efeito, a remissão legal para as MTDs contém uma abertura para o exercício administrativo da margem de livre apreciação, mormente através de juízos de prognose: é à Administração que caberá, caso a caso e em cada momento, concretizar quais as melhores técnicas a seguir pelas instalações poluentes. No entender do Doutor TIAGO ANTUNES, a abertura do preceito situa-se nos adjectivos[11]:

1.     Melhor – Eleger uma dada tecnologia como a melhor que as demais envolve, necessariamente, um juízo comparativo de todas as técnicas disponíveis, que dependerá dos factores ponderados e do grau de importância ou proporção estabelecida entre os vários factores. Ora, a definição de tais factores é realizada livremente pela Administração. Acresce que a escolha da melhor técnica acarreta uma projecção para o futuro.
2.     Disponíveis – Visto que, nesta fase, ainda não se conhecem todos os efeitos que podem advir da utilização de uma certa técnica, e os apetrechos técnicos, quando recentes, são deveras dispendiosos, a Administração deve ponderar bem quais as tecnologias que considera disponíveis e quais as que considera ainda indisponíveis. A Administração não está vinculada quanto ao preenchimento do conceito de tecnologia disponível, porquanto que, dadas as consequências – financeiras, científicas, ambientais - que decorrem da aplicação deste conceito, o seu preenchimento deve ser feito em concreto, atendendo às especificidades de cada caso.
3.     Exigíveis – A lei e a doutrina reportam-se apenas às melhores técnicas disponíveis, mas o Doutor TIAGO ANTUNES propugna o entendimento de que se deve adoptar a designação completa de melhores técnicas disponíveis e exigíveis, pois a alínea c), do nº 1, do artigo 31º do Decreto-Lei nº 127/2013 apela aos “custos e benefícios, quer sejam ou não utilizadas ou produzidas a nível nacional, desde que acessíveis ao operador em condições razoáveis”. Por conseguinte, não basta considerar que uma dada tecnologia é a mais eficaz em termos de protecção ambiental, sendo antes preciso ainda que essa tecnologia não implique encargos excessivos aos particulares em relação aos benefícios ambientais que trará. Não é plausível prosseguir o bem-estar ecológico a qualquer custo: a determinação das MTDs não é independente de considerações económicas (cfr. o artigo 31º, nº 2, do Decreto-Lei nº 127/2013). Este adjectivo é ainda relevante a outro título: o da aplicabilidade das novas tecnologias às actividades já instaladas, cujos custos e dificuldades de adaptação são muito mais elevados do que para as actividades que se vise instalar.

            Saber se uma determinada empresa utiliza ou não as MTDs é uma questão que envolve escolhas da responsabilidade da Administração, nos três momentos do fluir contínuo que, na óptica do Professor VASCO PEREIRA DA SILVA, caracterizam a aplicação/criação do Direito no caso concreto. Num primeiro momento, existe um problema de interpretação de um conceito indeterminado, que atribui à Administração uma margem de apreciação na determinação das MTDs, a qual assenta essencialmente em considerações de índole técnica, mas que não pode negligenciar critérios de eficiência económica e de razoabilidade. Numa segunda fase, a Administração efectua um juízo quanto a saber se aquela concreta instalação se propõe ou se encontra a laborar de acordo com a exigência das MTDs, o que acaba também por conceder à Administração uma margem de apreciação, na medida em que a sua decisão implica tanto a apreciação de situações existentes como a antecipação de previsíveis consequências futuras. Por fim, incumbe à Administração uma margem de decisão na escolha da solução mais adequada para o caso concreto, seja ela atinente à concessão ou à renovação da licença ambiental e aos respectivos termos – condições e deveres dos requerentes, limites de emissão -, ou relativa à graduação da sanção aplicável em caso de incumprimento dos deveres da relação jurídica em apreço[12].
           Note-se que em todos estes momentos da actuação administrativa nos defrontamos com escolhas da Administração, que pressupõem juízos técnicos e regras de bom-senso, que, sendo discricionárias, não são livres, antes correspondem à realização do Direito no caso concreto. Daí que, e, sem prejuízo da margem ineliminável da responsabilidade da Administração, as decisões administrativas se encontrem subordinadas a fiscalização judicial, que incide sobre todos os respectivos aspectos vinculados – pelo menos, sempre os da competência, do fim e dos princípios gerais fundamentais, entre os quais os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé (artigo 266º da Constituição da República Portuguesa)[13].
        Discorrendo sobre esta temática, o Doutor TIAGO ANTUNES sustenta que o juízo de exigibilidade patente no conceito de MTDs é claramente um juízo discricionário, por três motivos principais. Em primeiro lugar, porque carece de uma avaliação administrativa das vantagens e desvantagens de cada inovação tecnológica. Em segundo lugar, já que se reconduz a ponderações económicas, sendo a Economia um dos exemplos paradigmáticos de uma ciência não exacta. Em terceiro lugar, pois o adjectivo exigíveis implica, indubitavelmente – se dúvidas ainda houvesse no tocante aos outros adjectivos -, uma ponderação administrativa dos diversos interesses, públicos e privados, conflituantes[14].
            Por seu turno, a Professora CARLA AMADO GOMES defende que, quando a lei submete a actuação administrativa a parâmetros técnicos, a Administração não goza de qualquer margem de livre decisão, não formula qualquer juízo valorativo, reflexo de um balanceamento de sustentação da decisão constituída por juízos de conteúdo científico. É verdade que a remissão para normas técnicas pode ser acompanhada da concessão de margem de livre decisão ao órgão decisor. No que concerne à cláusula MTDs, pode, inclusive, sustentar-se, à luz de uma interpretação teleológica, que, no sentido em que ela simboliza o reconhecimento da necessidade de prevenção nos limites do conhecimento humano, há uma assunção implícita de um quantum de margem de livre decisão na valoração da incerteza que subjaz à decisão e que não é, em regra, totalmente eliminada pela avaliação técnica dos pressupostos de facto e pela determinação pelas medidas de minimização do risco aplicáveis. Contudo, em abstracto, é possível destrinçar os momentos de escolha dos momentos de vinculação, os juízos de existência dos juízos valorativos, no quadro do ir e vir descritivo/valorativo empreendido pela Administração. No domínio das decisões sobre o risco, o momento da ponderação da incerteza só surge após estar delineado, de modo cientificamente inteligível, o quadro fáctico resultante da avaliação técnica. Só com base em dados objectivos é que a Administração pode iniciar a ponderação concreta dos interesses em jogo através de juízos de prognose. A Professora conclui que a utilização de conceitos indeterminados no âmbito da remissão para normas técnicas não acarreta, por si só, discricionariedade, pelo menos enquanto o preenchimento de tais conceitos se fizer por força de raciocínios lógico-discursivos, com apoio em dados objectivos. A discricionariedade só nasce através de conceitos verdadeiramente indeterminados, aqueles que requerem do órgão que aplica a norma um juízo de valoração, avaliação ou prognose sobre incertezas de cariz causal-teorético[15].
          Por fim, cumpre referir que na determinação das MTDs ganham relevo as directivas de auto-vinculação. Por via destas, emanadas de órgãos consultivos, em estreito intercâmbio informacional com instâncias europeias, especialmente aptos à análise e selecção das melhores técnicas presentes no mercado, os órgãos decisores vão poder valer-se de orientações padronizadas, sector a sector, que lhes permitirão conformar os deveres de prevenção dos operadores da forma mais tecnicamente avançada possível e mais economicamente viável a um operador médio. Não obstante a redução da margem de livre apreciação que esta cláusula fomenta, é de louvar a igualdade que ela garante entre os operadores de um mesmo sector[16].
É bastante controvertida a questão de saber se tais directivas podem revestir eficácia externa, em virtude da proibição emergente do artigo 112º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa. O artigo 8º, nº 4, do Decreto-Lei nº 127/2013, de 30 de Agosto, veio introduzir uma norma que deixa algumas inquietações sobre a sua conformidade constitucional. Isto porque se trata de uma disposição que admite a publicação – e disponibilização no balcão único -, através de despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas técnicas em causa e pela pasta do Ambiente, de normas indicativas de (melhores) técnicas (disponíveis) padronizadas, por sector ou operação, aprovadas pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA, I.P.). Segundo o Professor JORGE MIRANDA, o artigo 112º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa não obvia a que a lei remeta para diploma regulamentar a integração ou interpretação dos seus preceitos. Do que não se tratará é de interpretação autêntica, podendo tal integração ser questionada jurisdicionalmente. Tendo em conta a complexidade técnica das questões, é pouco provável que os tribunais aceitem a sua revisão, embora reste sempre a via do erro manifesto ou da alteração de circunstâncias. E isto sendo certo que a Administração ambiental se pode afastar destas directivas, quando as circunstâncias reclamem uma protecção superior, designadamente em razão de factores geográficos e meteorológicos. Naturalmente que tal derrogação deverá apoiar-se numa fundamentação especialmente desenvolvida, sob pena de violação dos princípios da igualdade, imparcialidade ou proporcionalidade (cfr. o artigo 124º, nº 1, alínea d), do Código do Procedimento Administrativo)[17].
 Em jeito de conclusão, a despeito de a gestão do risco não se esgotar na fórmula das MTDs - devendo a Administração poder contar com outros instrumentos que lhe permitam introduzir a dose de prognose necessária à adaptação do acto autorizativo a novas circunstâncias, físicas, técnicas e jurídicas -, esta cláusula é fulcral para o procedimento de licenciamento ambiental, assumindo-se, por um lado, como uma garantia de segurança e igualdade para os operadores, e, por outro, como um dado inarredável para a conformação da relação autorizativa de controlo integrado da poluição[18].



Bibliografia

·      ANTUNES, Tiago, “O ambiente entre o Direito e a Técnica”, Lisboa, 2003
·      GOMES, Carla Amado, “Introdução ao Direito do Ambiente”, 2º Edição, AAFDL, Lisboa, 2014
·      GOMES, Carla Amado, e ANTUNES, Tiago, “O que há de novo no Direito do Ambiente?: Actas das jornadas de Direito do Ambiente”, AAFDL, Lisboa, 2009
·      GOMES, Carla Amado, “Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do ambiente, Coimbra Editora, 2007
·      GOMES, Carla Amado, “Textos dispersos de direito do ambiente e matérias relacionadas”, vol II, AAFDL, Lisboa, 2008
·      SILVA, Vasco Pereira da, “Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente”, Almedina, 2005



Por: Sofia Isabel Pires Chaves
Discente nº 21006



[1] Os standards ambientais ou limites de aceitabilidade são definidos por Paolo dell’Anno como parâmetros numéricos, formulados em termos objectivos, que estabelecem um equilíbrio ou compromisso entre a actividade industrial e a protecção da Natureza, consagrando limites máximos de tolerabilidade da poluição. A este respeito, vide ANTUNES, Tiago, “O ambiente entre o Direito e a Técnica”, Lisboa, 2003, págs. 41 e ss.
[2] ANTUNES, Tiago, “O ambiente entre o Direito e a Técnica”, Lisboa, 2003, pág. 71
[3] Idem, págs. 71 e 72
[4] Idem, pág. 74
[5] GOMES, Carla Amado, “Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do ambiente, Coimbra Editora, 2007, págs. 453 e 454
[6] GOMES, Carla Amado, “Introdução ao Direito do Ambiente”, 2º Edição, AAFDL, Lisboa, 2014, pág. 119
[7] GOMES, Carla Amado, “Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do ambiente, Coimbra Editora, 2007,, pág. 456
[8] GOMES, Carla Amado, “Textos dispersos de direito do ambiente e matérias relacionadas”, vol II, AAFDL, Lisboa, 2008, pág. 303
[9] GOMES, Carla Amado, e ANTUNES, Tiago, “O que há de novo no Direito do Ambiente?: Actas das jornadas de Direito do Ambiente”, AAFDL, Lisboa, 2009, pág. 195
[10] ANTUNES, Tiago, “O ambiente entre o Direito e a Técnica”, Lisboa, 2003, pág. 72
[11] Idem, págs. 76 a 79
[12] SILVA, Vasco Pereira da, “Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente”, Almedina, 2005, págs. 201 e 202
[13] Idem, pág. 202
[14] ANTUNES, Tiago, “O ambiente entre o Direito e a Técnica”, Lisboa, 2003, pág. 81
[15] GOMES, Carla Amado, “Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do ambiente, Coimbra Editora, 2007, págs. 462 a 464
[16] GOMES, Carla Amado, “Introdução ao Direito do Ambiente”, 2º Edição, AAFDL, Lisboa, 2014, pág. 120
[17] Idem, págs. 121 e 122
[18] Idem, págs. 119 e 122

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