domingo, 18 de maio de 2014

Exclusão da dupla reparação à luz do artigo 10º do DL 147/2008


         Primeiramente, devemos começar por fazer umas notas prévias ainda antes de começar a análise do art. 10º do regime referido supra.
            Durante muito tempo a noção de dano ao ambiente passava muito pelo foco nas pessoas e nas coisas, pelo que aquele seria toda e qualquer lesão que atingisse particularmente um dado indivíduo, quer atentasse contra a sua personalidade quer o seu património, reflexa e consequentemente a qualquer ingerência negativa no meio ambiente. Resumidamente, havia uma tutela exclusivamente individual do dano a ressarcir.
            Neste seguimento, cumpre fazer uma breve análise ao regime da Directiva 2004/35/CE. Esta veio a ser bastante útil na elaboração do regime do DL 147/2008, uma vez que veio autonomizar o conceito de dano ecológico, como lesão ao ambiente e veda do seu âmbito de aplicação a reparação dos danos pessoais e patrimoniais que remete para o regime de responsabilidade civil; especifica os bens que são afetados, nomeadamente a água, espécies animais protegidos e habitats específicos previstos na Rede Natura 2000; tem uma vertente preventiva e reparadora; introduz a ideia de que deve haver uma preferência pela restituição in natura, recorrendo, subsidiariamente, a quantias pecuniárias que serão afetas a medidas de reparação complementares ou compensatórias.
 Face ao exposto, constatamos que o longo caminho dano ambiental/pessoal versus dano ecológico rumou no sentido de uma visão exclusivamente antropocêntrica do dano se ter tornado obsoleta.
Iniciemos então a abordagem ao DL 147/2008, onde está plasmado o regime da responsabilidade por dano ecológico, cujo âmbito de aplicação integra os danos ambientais, bem como as ameaças iminentes desses danos, causados em resultado do exercício de uma qualquer atividade desenvolvida no âmbito de uma atividade económica, independentemente do seu carácter público ou privado, lucrativo ou não, abreviadamente designada por atividade ocupacional”- art. 2º. 
Na sequência da mencionada Diretiva, a ideia patente do decreto-lei relativa à noção de reparação tem como ator principal os bens ambientais e como principal finalidade restituir o seu status quo, reabilitar e investir nos mesmos - as lesões pessoais seriam, portanto, indiretas, vindas na sequência do dano causado ao Ambiente.
Desta feita, estão, então, previstos vários modos de reparação, nomeadamente a reparação primária, a complementar e a compensatória.

·         Na reparação primária está pautada a preferência pela reconstituição in natura.

·         Quando tal não seja possível, temos então uma espécie de hierarquia nos restantes modelos:

a)  recorre-se à reparação complementar quando não é possível uma reposição idêntica ou aproximada ao estado inicial, prévio ao dano, e nesta as verbas exigidas serão investidas em medidas alternativas para tutela dos recursos naturais ou serviços afetados;

b)      na base, temos a reparação compensatória, que será um meio transitório ou, teleologicamente, “cautelar” pois visa impedir que mais danos se perpetrem e assegurar o efeito útil das outras duas vias reparadoras supra enquanto não forem concluídas.

            De referir que no capítulo II a reparação dos danos ambientais/pessoais está prevista nos artigos 7º a 9º e a dos danos ecológicos proprio sensu (veja-se art. 11º), no capítulo III nos artigos 12º e 13º - todos do RPRDE.
            Após feitas as ressalvas da evolução do conceito dos danos que podem ocorrer em Direito do Ambiente, dos vários tipos de reparação que podem existir e a disposição no DL 147/2008 quanto à responsabilização perante o tipo de lesão provocada, devemos, portanto, começar a abordagem à questão do art. 10º do referido decreto-lei. 

Artigo 10.º
Dupla reparação
1 - Os lesados referidos nos artigos anteriores não podem exigir reparação nem indemnização pelos danos que invoquem na medida em que esses danos sejam reparados nos termos do capítulo seguinte.
2 - As reclamações dos lesados em quaisquer processos ou procedimentos não exoneram o operador responsável da adoção plena e efetiva das medidas de prevenção ou de reparação que resultem da aplicação do presente decreto-lei nem impede a atuação das autoridades administrativas para esse efeito.

            Perante a leitura do artigo, deste se retira que não pode haver sobreposição de pedidos de compensação pecuniários por lesão que o particular sofra, quer a nível pessoal, económico ou outro, pelo impacto negativo projetado no meio ambiente com um pedido de reparação primária, complementar ou compensatória do dano ecológico.
            Conciliando a letra do art. 10º/1 in fine com os artigos 12º/2 e 13º/2 poderia levar a que se concluísse haver uma incompatibilidade dos regimes, mas assim não o é.
            Havendo autonomização entre os danos do capítulo II e capítulo III face às condutas causadoras, a proibição da dupla reparação propriamente dita não se encontra violada, pelo fato de as lesões serem independentes entre si, exigindo ser diversamente acauteladas nas sedes respetivas.
Ora, os únicos casos que são realmente problemáticos e de incompatível reparação à luz do artigo supra são as situações em que uma única conduta consegue confluir em dois danos, um ao ambiente e outro pessoal ou patrimonial. Como solucionar este caso?
            Com base na minha análise sobre a evolução do Direito do Ambiente, constata-se uma maior preocupação com o meio ambiente, quer em termos preventivos quer reparadores, no sentido de uma maior sustentabilidade e recuperação, se possível, dos recursos naturais lesados. Além do exposto, o regime da Lei 19/2014 de 14 de Abril, que explana e concretiza o art. 66º da CRP, no art. 8º/1 e 8º/2 (“criação de um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado e, na ótica do uso eficiente dos recursos e tendo em vista a progressiva melhoria da qualidade vida, para a sua proteção e preservação”), a cumular à própria ideia inerente a este diploma legal de desenvolvimento sustentável e de gestão de recursos, denota a existência de um maior “ambientocentrismo”.
            Em suma, face ao que foi evidenciado e a acrescer à teleologia do art. 10º/1, denoto que deve haver uma tutela privilegiada do dano ecológico face ao dano pessoal/patrimonial, em que com a reparação do primeiro ficasse, também, o segundo assegurado e reparado. Só e apenas se após a satisfação do dano ecológico se concluir que existe uma parcela do direito pessoal/patrimonial que seja autonomizável do todo já salvaguardado pela reparação do dano ecológico é que será tutelado no âmbito do capítulo II, não havendo, neste caso, qualquer violação ao art. 10º.



 Carolina Josefa
nº20817

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