sábado, 3 de maio de 2014

Protecção do Parque Natural da Ria Formosa à luz do Regime Juridico da Rede Natura 2000


A Ria Formosa, constituída por uma área de 18 mil hectares ao longo de 60 quilómetros, cobre o litoral algarvio desde o rio Ancão até à praia da Manta Rota, envolvendo os concelhos de Loulé, Faro, Olhão, Tavira e Vila Real de Santo António, estando distribuída por três zonas: a zona marítima, a zona do cordão dunar e a zona sapal. Era, até 9 de Dezembro de 1987 e desde 1978 considerada Reserva Natural. Com o Decreto-Lei n.º373/87 de 9 de Dezembro de 1987 passa a ter o estatuto de Parque Natural. A noção de Parque Natural encontra-se no art.º 17 n.º1 do Decreto-Lei nº142/2008 que o define como uma «área que contenha predominantemente ecossistemas naturais ou seminaturais, onde a preservação da biodiversidade a longo prazo possa depender de actividade humana, assegurando um fluxo sustentável de produtos naturais e de serviços».
 Uma vez que foi considerada uma área protegida pela Directiva 79/409/CEE de 2 de Abril de 1979 relativa à conservação das aves selvagens, transposta para o ordenamento jurídico português através do Decreto-Lei n.º49/2005 que regula o Regime Jurídico da Rede Natura 2000 (RJRN2000), a Ria Formosa está abrangida pela Rede Natura 2000.
A Rede Natura 2000 é uma rede ecológica de âmbito europeu com vista à protecção da biodiversidade, constituída por Zonas de Proteção Especial (79/409/CEE de 2 de Abril de 1979), que pretendem garantir a conservação e reprodução de aves selvagens e dos seus habitats (Directiva Aves), e por Zonas Especiais de Conservação (92/43/CEE de 21 de Maio 1992), que ambicionam a conservação dos habitats naturais e da fauna e flora selvagens no território europeu (Directiva Habitats), tal como decorre do art.º 4 do Decreto-Lei n.º49/2005.
A Directiva Aves e a Directiva Habitats foram criadas pela necessidade de regular de forma harmoniosa a proteção da biodiversidade, «através da conservação ou do restabelecimento dos habitats naturais e da flora e da fauna selvagens num estado de conservação favorável, da protecção, gestão e controlo das espécies, bem como da regulamentação da sua exploração» tal como resulta do n.º 2 do art.º1 do RJRN2000. A Directiva Aves visa a conservação de todas as espécies de aves que vivem em estado selvagem do território europeu, aplicando-se às aves e seus ovos, ninhos e habitats (art.º 1.ºs 1 e 2 da respectiva Directiva), enquanto que a Directiva Habitats pretende a proteção dos habitats naturais e da fauna e flora selvagens do continente europeu (art.º 4 n.º 1 e 2 da  respectiva Directiva).
A classificação de «zonas de proteção especial» como áreas de importância comunitária do território nacional em que são aplicadas as medidas necessárias para a manutenção ou restabelecimento do estado de conservação das populações de aves selvagens inscritas no  anexo A-I e dos seus habitats, bem como das espécies de aves migratórias não referidas neste anexo e cuja ocorrência no território nacional seja regular (ZPE) reveste a forma de decreto regulamentar (art.º 6 n.º1 RJRN2000).
A nomeação de ZPE’s deve ter em consideração, como resulta do art.º 6 n.º2 da Rede Natura 2000, as tendências e variações dos níveis populacionais das espécies ameaçadas de extinção, as espécies vulneráveis a certas modificações dos seus habitats, as espécies consideradas raras porque as suas populações são reduzidas ou porque a sua reparação local é restrita, e as espécies que necessitem de especial atenção devido ao seu habitat. A classificação destas zonas como tendo carácter de proteção especial, confere-lhes um estatuto jurídico especifico que pretende proteger a biodiversidade que ai existe.
Uma vez classificados como ZPE’s ou ZEC’s, esses territórios irão integrar uma rede de espaços afectos à conservação da natureza. As ZPE’s são selecionadas pelos Estados-Membros, não sendo exigido pela Directiva Aves que essa seleção revista forma especifica, tendo optado o Ministério do ambiente e do ordenamento do território português por, na sua transposição, exigir que revista a forma de decreto regulamentar (art.º 6 n.º1 do RJRN2000). Pelo contrário, a Directiva Habitats prevê a criação das ZEC’s através de três fases: a fase de elaboração pelo Estado-Membro de uma lista nacional de sítios (LNS), aprovado por Conselho de Ministros (art.º 5 RJRN2000) de habitats naturais previstos no anexo I e habitats das espécies previstas no anexo II; a  fase de análise pela Comissão Europeia da LNS apresentada, selecionando uma lista publicada através de portaria do ministro responsável dos sítios de importância comunitária (SIC’s); e por último, a fase de reconhecimento pelos Estados-Membros das zonas que consideram ZEC’s através de decreto regulamentar dentre os territórios considerados pela Comissão Europeia como SIC’s no prazo de 6 anos.
A delimitação das zonas abrangidas  pela  Rede Natura 2000 não implica que as restantes áreas fora desse âmbito devam ser descuradas. Como tal, devido à dificuldade de circunscrever o limite geográfico e a possibilidade de os animais circularem fora dessa zona protegida, leva a crer que há uma necessidade de proteger não só as zonas classificadas, como também as zonas circundantes. Foi esse o entendimento ordenado na Directiva Aves e na Directiva Habitats, uma vez que a primeira prevê no seu art.º 3 n.º2 b) «a manutenção e adaptação ajustadas aos imperativos ecológicos dos habitats situados no interior e no exterior das zonas de protecção», bem como o art.º 4 n.º4 que refere que os Estados-Membros devem esforçar-se para além das zonas de proteção por evitar a poluição ou deterioração dos habitats. Quanto à Directiva Habitats, esta regula nos art.º 3 n.º3 e 10.º, transposto pelo art.º 7.º-C do RJRN2000 que há uma necessidade de proteção de outros habitats, exigindo uma coerência ecológica através do desenvolvimento de elementos paisagísticos de importância fundamental para a fauna e flora selvagens (n.º1), sendo estes identificados «pela sua estrutura linear e continua, como os rios, ribeiras e respectivas margens ou os sistemas tradicionais de delimitação dos campos, ou pelo seu papel de espaço de ligação, como os lagos, lagoas ou matas essenciais à migração, à distribuição geográfica e ao intercambio genético de espécies selvagens» (n.º2). O número 3 do mesmo artigo impõe ainda que se tomem as medidas adequadas sempre que possível para evitar a poluição e deterioração das zonas que não foram classificadas como ZPE pelo regime jurídico.
O RJRN2000 pretende contribuir para assegurar a biodiversidade dos Estados-Membros, e como tal, fixa regras de conservação ou restabelecimento dos habitats e regras relativas à protecção das espécies (art.º 1 n.º2). As medidas de conservação para as ZEC’s encontram-se reguladas genericamente no proémio do n.º2 do art.º 7, enquanto que nas suas alíneas pode encontrar-se medidas especificas e no n.º3 medidas completares. Para as ZPE’s, o RJRN2000 institui medidas genéricas no número 1 que impõem medidas adequadas a evitar a poluição ou a deterioração dos habitats e as perturbações que afectam as aves, desde que tenham um efeito significativo para a área. Uma vez que o art.º 7-B n.º2 remete para o regime previsto para as ZEC’s estamos perante um regime uniforme de proteção das zonas protegidas pela Rede Natura 2000.
Como medida de conservação, o RJRN2000 exige a elaboração de um instrumento de gestão territorial como forma de execução do plano sectorial para a gestão territorial dos sítios protegidos e as medidas referentes à conservação das espécies da fauna, flora e habitats (art.º 7 n.º2 a) e art.º 8). É portanto exigido que seja traçado um plano de ordenamento do território com orientações para a gestão do território (n.º4 do art.º 8) de modo a garantir a conservação das espécies, fauna e flora, bem como execução do regime jurídico da Rede Natura 2000 de forma mais vantajosa para a garantia da biodiversidade.
A segunda medida especifica refere-se à gestão, remetendo o art.º 7 n.º2 b) para o art.º 9, que limita os actos e actividades referidos nas alíneas do seu numero 2 que possam ser lesivas para o ambiente quando feitas nas zonas protegidas, dependendo a sua execução de parecer favorável do Instituto de Conservação da Natureza (ICN) ou da comissão de coordenação e desenvolvimento regional competente. A necessidade de controlo prévio passa a ser dispensado caso haja revisão ou alteração dos planos especiais de ordenamento do território  aplicáveis e, nas áreas não abrangidas por aqueles planos, sempre que os relatórios dos planos municipais de ordenamento do território aplicáveis não contenham a fundamentação do art.º 8 n.º3 alínea a).
O parecer deve ser emitido no prazo de 45 dias desde a data da sua solicitação (art.º9 n.º3). Na ausência de parecer entende-se que equivale a resposta favorável (n.º5), e no caso de o parecer ser negativo há possibilidade de recurso para o Ministro do Ambiente nos termos do numero 5 do art.º 9. No caso de haver necessidade de a actividade estar sujeita a avaliação de impacte ambiental, o prazo do numero 3 suspende-se, uma vez que há a necessidade de efectuar-se uma analise de incidências ambientais (AIncA) da actividade humana quando susceptiveis de afetar a zona de forma significativa, tal como exigido pelo art.º 10 n.º1, constituindo juntamente com a AIA a terceira medida especifica de conservação regulada pelo art.º 7 (alínea c) do n.º2).
O art.º 7 n.º2 d) prevê medidas de vigilância, que reguladas pelo art.º 20, consistem em assegurar a monotorização e vigilância sistemática de conservação das espécies e habitats referidos pelo ICN. Caso se tratem de espécies cinegéticas (espécies destinadas à caça desportiva), a sua vigilância cabe também ao Ministério da Agricultura (n.º2).
Por último, a alínea e) do n.º2 do art.º 7 refere como medida especifica a fiscalização do cumprimento do disposto no presente diploma e respectiva legislação complementar, que compete às entidades referidas no art.º 21, regulando os artigos seguintes as sanções aplicáveis em caso de incumprimento, tal como coimas, sanções acessórias, reposição da situação anterior, embargo e demolição.
 O art.º 7 refere ainda medidas complementares de conservação «a) planos de gestão que contemplem medidas e acções de conservação adequadas, por portaria conjunta do Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território e dos ministros com tutela sobre os sectores com interesses relevantes na ZEC visada, precedidos de consulta publica que segue os tramites previstos no regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial para os planos especiais de ordenamento do território; b) outras medidas regulamentares, administrativas ou contratuais que cumpram os objectivos de conservação visados pelo presente diploma» (n.º3).
A Ria Formosa é um parque protegido por ilhas barreira, com uma grande diversidade de ambientes, que alberga não só espécies raras, como espécies em vias de extinção, para além de ser conhecido pela grande diversidade de aves aquáticas, razão pela qual é considerada uma das 90 áreas em Portugal prioritária para a conservação das aves e seus habitats (IBA – Important Bird Areas) e integra a Rede Natura 2000. O ambiente fértil da ria é propicio à reprodução não só de peixes e marisco, como também proporciona às aves melhores condições de reprodução e de utilização deste parque como ponto de paragem no inverno durante as migrações entre a Europa e África.
Ainda que considerada um parque natural desde de 9 de Dezembro de 1987 através do Decreto-Lei n.º373/87 de 9 de Dezembro de 1987, integrando a Rede Nacional de Áreas Protegidas, regulado hoje em dia pelo Decreto-Lei 142/2008, de 24 de Julho, a Ria Formosa integra também a Rede Natura 2000, uma vez que a classificação de uma zona como área protegida não exclui a imposição de a incluir no Regime Jurídico da Rede Natura 2000, como foi decidido pelo TJUE no acórdão de 19 de Maio de 1998. O mesmo decorre do art.º 9 do Decreto-Lei n.º142/2008 que esclarece que o Sistema Nacional de Áreas Classificadas (SNAC) é constituído, entre outros, pelas áreas classificadas integradas na Rede Natura 2000.
Uma vez que se trata de uma zona húmida de importância internacional, foi inscrita na Convenção de Ramsar de 1971 devido à sua importância internacional como habitat de aves aquáticas, e, nesse âmbito, o Governo Português comprometeu-se a preservar o meio ambiente e utilizar os recursos de forma racional, de modo a contribuir para a conformidade global do ecossistema, uma vez que «defender a natureza e o ambiente», «preservar os recursos naturais», «criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios, de modo a garantir a conservação da natureza e a preservação de valores culturais de interesse histórico ou artístico» é uma tarefa fundamental do Estado que decorre dos art.º 9 e 66º da Constituição, competindo-lhe nos termos da Lei n.º 19/2014 (Lei de Bases do Ambiente) a realização da politica de ambiente (art.º 2 n.º2 da LBA).
 Descritas pelo Dr. Tiago Antunes como “santuários da vida selvagem”, as zonas húmidas são áreas de uma extrema importância devido à sua elevada fertilidade e condições prósperas ao desenvolvimento da vida selvagem, tendo sido objecto de protecção pela comunidade internacional que, nas palavras de Tiago Antunes, demonstrou argúcia, discernimento e realismo, actuando de forma cirúrgica e direccionada[1]”.
A protecção do parque natural da Ria Formosa é considerado de grande importância, não só a nível nacional, como a nível internacional, devido à necessidade de proteger a biodiversidade que existe nesta zona húmida. Desde cedo a actividade humana tem vindo a colocar em perigo progressivamente espécies, ecossistemas, recursos e habitats naturais, e como tal há uma necessidade de colmatar essas ameaças humanas de forma que continue a existir condições prósperas de sobrevivência de todos os seres vivos. Ainda que essa actividade humana resulte em pequenos danos para o ambiente, a sua acumulação tem resultados a longo prazo que já se fazem sentir, tal como a perda de ecossistemas, o aquecimento global ou a extinção de espécies de forma irreversível. Esta perda de biodiversidade leva a um empobrecimento da “capacidade de sobrevivência da espécie humana”[2].
Nas palavras de Carla Amado Gomes, «promover medidas de conservação activa, que permitam preservar o existente e contribuir para um entrelaçamento entre os aproveitamentos possíveis da biodiversidade e a vivência da área pelos frequentadores que as suas características permitirem[3]» é essencial para que haja uma  conservação eficiente do ambiente.
Com a pretensão de assegurar a proteção dos valores naturais existentes na área, contribuindo para o desenvolvimento regional e nacional, devido à sua grande diversidade, o Parque Natural da Ria Formosa, nomeado  como uma das 7 maravilhas de Portugal, foi considerado em 2008 como prioritário pelo projecto Polis para a requalificação e valorização da orla costeira. A Sociedade Polis Litoral Ria Formosa foi criada para esse fim, através do Decreto-Lei 232/2007 de 15 de Junho, que fixa o Regime da Avaliação Ambiental Estratégica (AAE).

Bibliografia

ANTUNES, Tiago, Singularidades de um Regime Ecológico – O Regime jurídico da Rede Natura 2000 e, em particular, as deficiências da análise de incidências ambientais, in No Ano Internacional da Biodiversidade, e-book, Lisboa, ICJP, 2010;
 HENRIQUES, Pedro Castro – Parques e reservas naturais em Portugal, Verbo 2000;
GOMES, Carla Amado, Introdução ao Direito do Ambiente, AAFDL, 2ª Edição, Lisboa, 2014;
GOMES, Carla Amado, Uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma, in No Ano Internacional da Biodiversidade, e-book, Lisboa, ICJP, 2010;
http://www.icnf.pt/portal
http://www.olhao.web.pt/parquenatural.htm
http://www.formosamar.com/ria-formosa
www.polislitoralriaformosa.pt/





[1] in ANTUNES, Tiago, Singularidades de um Regime Ecológico – O Regime jurídico da Rede Natura 2000 e, em particular, as deficiências da análise de incidências ambientais, in No Ano Internacional da Biodiversidade, e-book, Lisboa, ICJP, 2010
[2] ALMEIDA, José Mário Ferreira de, “Energia e conservação da natureza”, in Temas de Direito da Energia, Cadernos O Direito, n.o 3, 2008, p. 166. apud ANTUNES, Tiago, Singularidades de um Regime Ecológico – O Regime jurídico da Rede Natura 2000 e, em particular, as deficiências da análise de incidências ambientais, in No Ano Internacional da Biodiversidade, e-book, Lisboa, ICJP, 2010.
[3] GOMES, Carla Amado, Uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma, in No Ano Internacional da Biodiversidade, e-book, Lisboa, ICJP, 2010.



Catarina Furtado nº 20847

1 comentário:

  1. Visto.

    A Sociedade Polis Litoral Ria Formosa foi criada através do Decreto-Lei 232/2007 de 15 de Junho, que fixa o Regime da Avaliação Ambiental Estratégica (AAE)?????

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