quinta-feira, 15 de maio de 2014

          As autorizações  administrativas   e a  tutela do lesado por danos ambientais


Neste post pretendo analisar quais os meios de reação que poderá lançar mão um terceiro lesado quando a atividade causadora dos danos foi devidamente autorizada por um ato da Administração. Para tal surge como imprescindível abordar a problemática da amplitude conformativa que o ato administrativo tem sobre as relações jurídicas entre privados, que se traduz na questão: “tem um ato autorizativo administrativo força jurídica suficiente para justificar a produção de efeitos lesivos na esfera jurídica de terceiros, ou, pelo contrário, é razoável admitir que um ato de um particular coberto por uma autorização administrativa pode, apesar da existência desta autorização, revelar-se como ilícito na ordem jurídico-civil, ficando como tal sujeito às reações jurídicas típicas desta ordem?”.[1]
As consequências práticas deste tema podem ser demonstradas com um caso retirado da nossa jurisprudência, em que os vizinhos de uma instalação fabril, sujeitos a emissões derivadas daquela, intentaram uma ação pedindo a cessação da atividade danosa e ainda o pagamento de uma indemnização por atos ilícitos e culposos nos termos do art.1346º e 483º do Código Civil. O réu veio invocar o facto de ter adquirido todas as licenças administrativas necessárias e de nunca ter faltado ao cumprimento destas. Como deverá proceder o tribunal nestes casos?
Se optarmos pelo efeito não conformador da autorização, a atuação do particular passa a ser considerada simultaneamente como licita e ilícita, consoante a perspetiva sobre a qual esteja a ser observada, o que vai contra o princípio da unidade do ordenamento jurídico. Por outro lado, optando pelo efeito de conformação, o lesado terá de suportar os danos na sua esfera jurídica. Aparece aqui em confronto a proteção do terceiro lesado por uma atividade permitida e a própria proteção do titular da autorização administrativa que, com base no princípio da segurança jurídica, confia na impossibilidade de serem contra ele movidas quaisquer ações tendentes à cessação da sua atividade ou ao pagamento de uma indemnização.
A discussão surgiu devido ao crescente esbatimento das fronteiras entre Direito Privado e Direito Público, isto é, devido ao fenómeno de publicização das relações jurídicas privadas. Como resolver as contrariedades que surjam pela incidência de novas normas publicistas em áreas que até então constituíam monopólio civil?
São várias as soluções que têm sido apresentadas. Um setor da doutrina tem sustentado que o direito administrativo deverá prevalecer sobre os restantes ramos do Direito, visto que aquele se caracteriza por ter em consideração quer interesses públicos como interesses privados. Acrescentam ainda que o efeito conformador do ato administrativo resultaria do facto de a autorização já conter em si uma ponderação sobre os vários interesses em jogo, tomando uma posição. Nesta linha de pensamento “a publicização do direito dos vizinhos significa que à função de resolução de conflitos individuais sobreveio uma função de ordenação no interesse da comunidade desempenhada pelo direito público” [2], que deverá prevalecer. Defendendo uma mesma solução no entanto traçando um caminho distinto, estão aqueles autores que recorrem à própria natureza do ato administrativo afirmando que uma das suas características essenciais consiste no facto de o ato ser vinculativo quer para os sujeitos por ele abrangidos como para todos os órgãos do Estado, pelo que não surgiriam quaisquer dúvidas quanto ao seu efeito conformador de relações jurídicas entre privados.
Em sentido oposto encontram-se os autores que defendem a autonomia dos dois ramos de Direito, considerando que os atos da administração não terão qualquer consequência a nível das relações entre privados uma vez que as finalidades por estes prosseguidas são distintas. Assim, ao autorizar uma determinada atividade a Administração faz um juízo de prognose, numa lógica de tutela preventiva, enquanto ao direito privado caberia uma função repressiva atuando no caso de o juízo de prognose não vir a ter uma correspondência com a factualidade - “o direito privado consegue antes desempenhar uma função de correção, em conflitos concretos, das considerações gerais do direito público tecidas na ponderação de todos os interesses”[3]. Seguindo esta posição, não haveria efeito conformador e o lesado poderá recorrer aos meios de reação previstos na lei civil. Este tem sido o entendimento unânime da doutrina privalista em Portugal que defende que a ação negatória nunca poderá ser afastada pela existência de uma autorização pública uma vez que esta constitui precisamente o meio de defesa que os particulares poderão utilizar para “fazer frente” a um licenciamento administrativo.
No meio destas duas leituras surgem as posições intermédias que apenas admitem o efeito conformador em determinadas situações. Em Portugal, o Prof. Gomes Canotilho desenvolveu esta posição a propósito do efeito legalizador do ato da administração, afirmando que “a existência de uma norma de justificação em sede jurídico-administrativa não significa sempre e necessariamente a exclusão da ilicitude fixada em normas de direito civil ou de direito penal, mas o efeito justificativo impor-se-á desde que isso resulte inequivocamente da lei e não ofenda os princípios básicos de ordem jurídico-constitucional”[4]. Para que seja possível o efeito conformador o Professor exige que se encontrem verificados determinados requisitos, nomeadamente a expressa previsão legal do efeito justificativo e a previsão normativa do efeito preclusivo do ato autorizativo. A lei que determinar o efeito legalizador deve sujeitar-se aos limites impostos à restrição de direitos fundamentais, uma vez que “o licenciamento de um estabelecimento industrial (…), não legitima, a priori, a lesão de direitos fundamentais como a vida, o ambiente e a qualidade de vida, a saúde e a propriedade.”[5]. Deste modo o Professor exige que o efeito conformador observe o princípio da reserva de lei bem como o princípio da adequação, sendo necessário a prova no caso concreto da sua aptidão, adequação e necessidade.
 Havendo efeito legalizador, a atuação do particular causadora de danos será lícita, o que na opinião do Professor não afasta o direito do lesado a uma compensação de sacrifícios uma vez que “a lesão de bens jurídicos sem qualquer compensação contraria o direito constitucional de reparação de danos”[6]. O facto de existir um ato que autorize a atividade não terá no entanto a consequência de transferir para o Estado o dever de pagar a indemnização, antes será obrigação do particular responsável pela lesão. A mesma opinião segue Cunhal Sendim que defende exclusão de ações negatórias mas salvaguarda o direito à indemnização.
Qual tem sido o entendimento dos tribunais portugueses?
São vários os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que demonstram que a regra geral nos tribunais portugueses é a de não aceitar o efeito conformador. As soluções da nossa jurisprudência têm sido as de condenar na cessação da atividade causadora dos danos e ainda no pagamento de indemnizações ao lesado.
·         Posição
As posições extremas apresentam argumentos que podem ser utilizados para defender ambos os entendimentos. A necessidade de assegurar a unidade do ordenamento jurídico evitando a existência de contradições poderá ser utilizado quer para defender a precedência do direito administrativo sobre o direito privado, como para defender a situação reversa. Como afirma Canaris, o princípio da unidade do ordenamento jurídico está intimamente relacionado com os princípios da segurança jurídica e da tutela da confiança. E se aqui devemos ter em atenção a tutela da confiança do autorizado, que ao obter o ato administrativo necessário para o desenvolvimento da atividade confia na licitude da sua situação jurídica, também não podemos menosprezar a confiança dos lesados no juízo de prognose da Administração, confiança essa que pode levar a que este não tenha reagido ao ato que autorizou a atividade.
A posição defendida pelo Professor Gomes Canotilho, se tem a virtude de ter em consideração que estamos perante restrições a direitos fundamentais, nomeadamente aos “direitos de defesa” e ao direito à vida, ao ambiente, à qualidade de vida e à saúde, acaba por se limitar a resolver os conflitos que menos problemas suscitam uma vez que foram solucionados pela própria lei. Ao defender a obrigatoriedade da existência de uma norma que determine expressamente o efeito legalizador, o Professor reduz as soluções aos casos em que o conflito dos interesses em causa foi ponderado pelo próprio legislador, sendo a contradição do ordenamento por ele resolvida através da emanação de uma norma. Como resolver os casos em que não existe nenhuma lei expressa a determinar os direitos que cabem ao terceiro lesado? O Professor não nos apresenta qualquer solução.
Para Mafalda Carmona a solução passa por verificar os efeitos do ato relativamente a terceiros e para tal é necessário determinar com precisão qual o conteúdo do ato autorizativo em questão, isto é, em que limites e circunstâncias o ato admite a atividade autorizada e as consequências jurídicas que aparecem por ele abrangidas. A determinação do conteúdo do ato deve envolver “uma consideração global (…) que abrange a consideração de todos os dados normativos, técnicos e factuais existentes, conhecidos ou cognoscíveis, previsíveis ou imprevisíveis ao tempo da emissão da autorização, bem como a sua inclusão nos juízos de prognose da Administração”[7]. Quanto a esse conteúdo o ato administrativo será vinculativo formando caso julgado. Assim, só se poderá concluir que foram permitidos pela Administração os efeitos que foram expressamente autorizados; que foram ponderados na formação do juízo de prognose e os que surgem como indissociáveis da atividade e por isso se presumem como aceites. Só estes estão abarcados pelo conteúdo do ato, e só esse conteúdo pode ser oposto a terceiros.
Quanto à possibilidade de recorrer à ação negatória, é importante salientar que o tribunal não pode substituir a Administração no exercício da sua atividade, devendo respeitar a margem de livre decisão administrativa. Cabe-lhe fazer um juízo de legalidade e não de mérito, pelo que apenas poderá interferir na atividade em causa quando o ato autorizativo padecer de uma ilegalidade.

 Mafalda Carmona apresenta as seguintes hipóteses:

1 – O autorizado não respeita o ato autorizativo – Neste caso não há qualquer dúvida quanto à possibilidade de recorrer e este meio de reação.
2 - Os prejuízos são inevitáveis ainda que tomadas todas as medidas de cuidado possíveis – A administração aptou pela prevalência do direito do autorizado relativamente ao direito do lesado, pelo que se não houver qualquer violação da proporcionalidade, o tribunal nada poderá fazer sob pena de violar o princípio da separação de poderes por passar a exercer a função administrativa. Há efeito conformador.
3 – Os prejuízos podiam ser minorados através da imposição de certas medidas de cuidado – Apesar de o tribunal concluir que era possível um maior equilíbrio entre os dois interesses em conflito, continua a não haver qualquer desproporcionalidade não podendo o tribunal interferir na atividade administrativa. Há efeito conformador.
4 – Os prejuízos causados podiam ter sido evitados pela adoção de medidas de cuidado que não seriam demasiado gravosas para o autorizado, uma vez que estas traduziriam um encargo insignificante comparativamente ao dano provocado – O juiz pode concluir pelo desrespeito do principio da proporcionalidade o que gerará a invalidade do ato. Esta invalidade não significa no entanto que o juiz possa decretar automaticamente a cessação da atividade uma vez que a autorização administrativa pode encontrar-se protegida pela força de caso decidido. A cessação da atividade pode também revelar-se desproporcional, tendo em conta que os danos causados seriam evitáveis através da adoção de medidas de cuidado. Nestes casos, o juiz deverá acrescentar à autorização as medidas necessárias para terminar com as lesões.
Relativamente à indemnização, a autora defende que a regra geral será a de esta constituir uma obrigação do autorizado. Para tal alega que, se é verdade que foi emitida uma autorização administrativa, esta não implica qualquer obrigatoriedade de exercer a atividade - “o ato administrativo autorizativo apenas constitui uma permissão de atuação e não uma imposição de atuação”[8]. Daqui retira a máxima de que quem tem liberdade de agir, deverá ser responsabilizado pelas consequências da sua atuação. Acrescenta ainda que, apesar de estar na titularidade uma autorização, cabe ao autorizado assegurar-se de que no exercício desta não causa quaisquer danos, tendo em conta o dever fundamental de respeitar o ambiente.
Assim, a autorização administrativa não deve ser considerada como uma espécie de garantia de defesa contra todos os danos que possam vir a ser causados pelo seu titular, devendo este ser responsabilizado pelas suas atuações. Acrescenta-se ainda o facto de ser a atividade do autorizado a que se encontra numa maior relação de proximidade em relação aos danos e de ser aquele que retira os proveitos da atividade danosa.
Isto não significa que em determinadas situações a Administração não seja a responsável pelo pagamento da indemnização, sendo no entanto necessário provar no caso concreto que a emissão de autorização originou um erro desculpável, que leva à exclusão da culpa. A exclusão da culpa não ocorrerá sempre uma vez que, como foi referido, sob o autorizado recaem deveres gerais de cuidado no desenvolvimento da sua atividade. Assim, apenas haverá exclusão quando se prove que na situação em análise deverá haver uma tutela da confiança. Um exemplo de exclusão da culpa seria o caso de a própria Administração ter ficado encarregue de fiscalizar com frequência a atividade e nunca se ter pronunciado sobre os danos causados aos vizinhos, nem ter determinado que novas medidas de cuidado deviam ser adotadas. Havendo exclusão da culpa, ao autorizado não pode ser exigido o pagamento de qualquer retribuição mas também não poderá o lesado não ser ressarcido, pelo que caberá o pagamento da indemnização à própria Administração. Esta obrigação de ressarcir é fundada na própria ilicitude da sua conduta: seja na emissão da autorização, seja na falta de imposição de medidas de cuidado ou ainda na insuficiente fiscalização da atividade. 
            A posição da autora surge assim, na nossa opinião, como o caminho a adoptar. Ao apresentar de forma detalhada as diversas situações com que nos possamos deparar, ao ter em consideração o conteúdo do ato em causa e os efeitos por ele abrangidos, Mafalda Carmona apresenta soluções que permitem resolver o caso em concreto. Fá-lo, no entanto tendo sempre em consideração os interesses envolvidos, de forma a tutelar a segurança jurídica de ambas as partes e respeitando os limites impostos pelas normas constitucionais.

Mariana Prelhaz - 20646




[1] CANOTILHO, José Gomes. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. Vol.LXIX, 1993, p.22.
[2] CARMONA, Mafalfa. O Acto Administrativo Conformador de Relações de Vizinhança. Lisboa: Almedina, 2011. P.219
[3] CARMONA, Mafalfa. O Acto Administrativo Conformador de Relações de Vizinhança. Lisboa: Almedina, 2011. P.397
[4] CANOTILHO, José Gomes. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. Vol.LXIX, 1993, p.28
[5] CANOTILHO, José Gomes. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. Vol.LXIX, 1993, p.31
[6] CANOTILHO, José Gomes. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. Vol.LXIX, 1993, p.34
[7] CARMONA, Mafalfa. O Acto Administrativo Conformador de Relações de Vizinhança. Lisboa: Almedina, 2011. P.305
[8] CARMONA, Mafalfa. O Acto Administrativo Conformador de Relações de Vizinhança. Lisboa: Almedina, 2011. P.361

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