As autorizações administrativas e a tutela do lesado por danos ambientais
Neste
post pretendo analisar quais os meios
de reação que poderá lançar mão um terceiro lesado quando a atividade causadora
dos danos foi devidamente autorizada por um ato da Administração. Para
tal surge como imprescindível abordar a problemática da
amplitude conformativa que o ato administrativo tem sobre as relações jurídicas
entre privados, que se traduz na questão: “tem um ato autorizativo
administrativo força jurídica suficiente para justificar a produção de efeitos
lesivos na esfera jurídica de terceiros, ou, pelo contrário, é razoável admitir
que um ato de um particular coberto por uma autorização administrativa pode,
apesar da existência desta autorização, revelar-se como ilícito na ordem
jurídico-civil, ficando como tal sujeito às reações jurídicas típicas desta
ordem?”.[1]
As
consequências práticas deste tema podem ser demonstradas com um caso retirado
da nossa jurisprudência, em que os vizinhos de uma instalação fabril, sujeitos
a emissões derivadas daquela, intentaram uma ação pedindo a cessação da atividade
danosa e ainda o pagamento de uma indemnização por atos ilícitos e culposos nos
termos do art.1346º e 483º do Código Civil. O réu veio invocar o facto de ter
adquirido todas as licenças administrativas necessárias e de nunca ter faltado
ao cumprimento destas. Como deverá proceder o tribunal nestes casos?
Se
optarmos pelo efeito não conformador da autorização, a atuação do
particular passa a ser considerada simultaneamente como licita e ilícita,
consoante a perspetiva sobre a qual esteja a ser observada, o que vai contra o
princípio da unidade do ordenamento jurídico. Por outro lado, optando pelo
efeito de conformação, o lesado terá de suportar os danos na sua esfera
jurídica. Aparece aqui em confronto a proteção do terceiro lesado por uma
atividade permitida e a própria proteção do titular da autorização
administrativa que, com base no princípio da segurança jurídica, confia na
impossibilidade de serem contra ele movidas quaisquer ações tendentes à
cessação da sua atividade ou ao pagamento de uma indemnização.
A
discussão surgiu devido ao crescente esbatimento das fronteiras entre Direito
Privado e Direito Público, isto é, devido ao fenómeno de publicização das
relações jurídicas privadas. Como resolver as contrariedades que surjam pela
incidência de novas normas publicistas em áreas que até então constituíam
monopólio civil?
São
várias as soluções que têm sido apresentadas. Um setor da doutrina tem sustentado
que o direito administrativo deverá prevalecer sobre os restantes ramos do Direito,
visto que aquele se caracteriza por ter em consideração quer interesses
públicos como interesses privados. Acrescentam ainda que o efeito conformador
do ato administrativo resultaria do facto de a autorização já conter em si uma
ponderação sobre os vários interesses em jogo, tomando uma posição. Nesta linha
de pensamento “a publicização do direito dos vizinhos significa que à função de
resolução de conflitos individuais sobreveio uma função de ordenação no interesse
da comunidade desempenhada pelo direito público” [2],
que deverá prevalecer. Defendendo uma mesma solução no entanto traçando um
caminho distinto, estão aqueles autores que recorrem à própria natureza do ato
administrativo afirmando que uma das suas características essenciais consiste
no facto de o ato ser vinculativo quer para os sujeitos por ele abrangidos como
para todos os órgãos do Estado, pelo que não surgiriam quaisquer dúvidas quanto
ao seu efeito conformador de relações jurídicas entre privados.
Em
sentido oposto encontram-se os autores que defendem a autonomia dos dois ramos
de Direito, considerando que os atos da administração não terão qualquer
consequência a nível das relações entre privados uma vez que as finalidades por
estes prosseguidas são distintas. Assim, ao autorizar uma determinada atividade
a Administração faz um juízo de prognose, numa lógica de tutela preventiva,
enquanto ao direito privado caberia uma função repressiva atuando no caso de o
juízo de prognose não vir a ter uma correspondência com a factualidade - “o
direito privado consegue antes desempenhar uma função de correção, em conflitos
concretos, das considerações gerais do direito público tecidas na ponderação de
todos os interesses”[3].
Seguindo esta posição, não haveria efeito conformador e o lesado poderá
recorrer aos meios de reação previstos na lei civil. Este tem sido o
entendimento unânime da doutrina privalista em Portugal que defende que a ação
negatória nunca poderá ser afastada pela existência de uma autorização pública
uma vez que esta constitui precisamente o meio de defesa que os particulares
poderão utilizar para “fazer frente” a um licenciamento administrativo.
No
meio destas duas leituras surgem as posições intermédias que apenas admitem o
efeito conformador em determinadas situações. Em Portugal, o Prof. Gomes
Canotilho desenvolveu esta posição a propósito do efeito legalizador do ato da administração,
afirmando que “a existência de uma norma de justificação em sede
jurídico-administrativa não significa sempre e necessariamente a exclusão da
ilicitude fixada em normas de direito civil ou de direito penal, mas o efeito
justificativo impor-se-á desde que isso resulte inequivocamente da lei e não
ofenda os princípios básicos de ordem jurídico-constitucional”[4].
Para que seja possível o efeito conformador o Professor exige que se encontrem
verificados determinados requisitos, nomeadamente a expressa previsão legal do
efeito justificativo e a previsão normativa do efeito preclusivo do ato
autorizativo. A lei que determinar o efeito legalizador deve sujeitar-se aos
limites impostos à restrição de direitos fundamentais, uma vez que “o licenciamento
de um estabelecimento industrial (…), não legitima, a priori, a lesão de direitos fundamentais como a vida, o ambiente
e a qualidade de vida, a saúde e a propriedade.”[5]. Deste
modo o Professor exige que o efeito conformador observe o princípio da reserva
de lei bem como o princípio da adequação, sendo necessário a prova no caso
concreto da sua aptidão, adequação e necessidade.
Havendo efeito legalizador, a atuação do
particular causadora de danos será lícita, o que na opinião do Professor não
afasta o direito do lesado a uma compensação de sacrifícios uma vez que “a
lesão de bens jurídicos sem qualquer compensação contraria o direito
constitucional de reparação de danos”[6]. O
facto de existir um ato que autorize a atividade não terá no entanto a
consequência de transferir para o Estado o dever de pagar a indemnização, antes
será obrigação do particular responsável pela lesão. A mesma opinião segue
Cunhal Sendim que defende exclusão de ações negatórias mas salvaguarda o
direito à indemnização.
Qual
tem sido o entendimento dos tribunais portugueses?
São
vários os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que demonstram que a regra
geral nos tribunais portugueses é a de não aceitar o efeito conformador. As
soluções da nossa jurisprudência têm sido as de condenar na cessação da
atividade causadora dos danos e ainda no pagamento de indemnizações ao lesado.
·
Posição
As
posições extremas apresentam argumentos que podem ser utilizados para defender
ambos os entendimentos. A necessidade de assegurar a unidade do ordenamento
jurídico evitando a existência de contradições poderá ser utilizado quer para
defender a precedência do direito administrativo sobre o direito privado, como
para defender a situação reversa. Como afirma Canaris, o princípio da unidade
do ordenamento jurídico está intimamente relacionado com os princípios da
segurança jurídica e da tutela da confiança. E se aqui devemos ter em atenção a
tutela da confiança do autorizado, que ao obter o ato administrativo necessário
para o desenvolvimento da atividade confia na licitude da sua situação
jurídica, também não podemos menosprezar a confiança dos lesados no juízo de
prognose da Administração, confiança essa que pode levar a que este não tenha
reagido ao ato que autorizou a atividade.
A
posição defendida pelo Professor Gomes Canotilho, se tem a virtude de ter em
consideração que estamos perante restrições a direitos fundamentais,
nomeadamente aos “direitos de defesa” e ao direito à vida, ao ambiente, à qualidade
de vida e à saúde, acaba por se limitar a resolver os conflitos que menos
problemas suscitam uma vez que foram solucionados pela própria lei. Ao defender
a obrigatoriedade da existência de uma norma que determine expressamente o
efeito legalizador, o Professor reduz as soluções aos casos em que o conflito
dos interesses em causa foi ponderado pelo próprio legislador, sendo a
contradição do ordenamento por ele resolvida através da emanação de uma norma.
Como resolver os casos em que não existe nenhuma lei expressa a determinar os
direitos que cabem ao terceiro lesado? O Professor não nos apresenta qualquer
solução.
Para
Mafalda Carmona a solução passa por verificar os efeitos do ato relativamente a
terceiros e para tal é necessário determinar com precisão qual o conteúdo do
ato autorizativo em questão, isto é, em que limites e circunstâncias o ato
admite a atividade autorizada e as consequências jurídicas que aparecem por ele
abrangidas. A determinação do conteúdo do ato deve envolver “uma consideração
global (…) que abrange a consideração de todos os dados normativos, técnicos e
factuais existentes, conhecidos ou cognoscíveis, previsíveis ou imprevisíveis
ao tempo da emissão da autorização, bem como a sua inclusão nos juízos de
prognose da Administração”[7].
Quanto a esse conteúdo o ato administrativo será vinculativo formando caso
julgado. Assim, só se poderá concluir que foram permitidos pela Administração
os efeitos que foram expressamente autorizados; que foram ponderados na formação
do juízo de prognose e os que surgem como indissociáveis da atividade e por
isso se presumem como aceites. Só estes estão abarcados pelo conteúdo do ato, e
só esse conteúdo pode ser oposto a terceiros.
Quanto
à possibilidade de recorrer à ação
negatória, é importante salientar que o tribunal não pode substituir a Administração
no exercício da sua atividade, devendo respeitar a margem de livre decisão
administrativa. Cabe-lhe fazer um juízo de legalidade e não de mérito, pelo que
apenas poderá interferir na atividade em causa quando o ato autorizativo
padecer de uma ilegalidade.
Mafalda Carmona apresenta as seguintes
hipóteses:
1
– O autorizado não respeita o ato autorizativo – Neste caso não há qualquer
dúvida quanto à possibilidade de recorrer e este meio de reação.
2
- Os prejuízos são inevitáveis ainda que tomadas todas as medidas de cuidado
possíveis – A administração aptou pela prevalência do direito do autorizado
relativamente ao direito do lesado, pelo que se não houver qualquer violação da
proporcionalidade, o tribunal nada poderá fazer sob pena de violar o princípio
da separação de poderes por passar a exercer a função administrativa. Há efeito
conformador.
3
– Os prejuízos podiam ser minorados através da imposição de certas medidas de
cuidado – Apesar de o tribunal concluir que era possível um maior equilíbrio
entre os dois interesses em conflito, continua a não haver qualquer desproporcionalidade
não podendo o tribunal interferir na atividade administrativa. Há efeito
conformador.
4
– Os prejuízos causados podiam ter sido evitados pela adoção de medidas de
cuidado que não seriam demasiado gravosas para o autorizado, uma vez que estas
traduziriam um encargo insignificante comparativamente ao dano provocado – O
juiz pode concluir pelo desrespeito do principio da proporcionalidade o que
gerará a invalidade do ato. Esta invalidade não significa no entanto que o juiz
possa decretar automaticamente a cessação da atividade uma vez que a
autorização administrativa pode encontrar-se protegida pela força de caso
decidido. A cessação da atividade pode também revelar-se desproporcional, tendo
em conta que os danos causados seriam evitáveis através da adoção de medidas de
cuidado. Nestes casos, o juiz deverá acrescentar à autorização as medidas
necessárias para terminar com as lesões.
Relativamente
à indemnização, a autora defende que a regra geral será a de esta
constituir uma obrigação do autorizado. Para tal alega que, se é verdade que
foi emitida uma autorização administrativa, esta não implica qualquer
obrigatoriedade de exercer a atividade - “o ato administrativo autorizativo
apenas constitui uma permissão de atuação e não uma imposição de atuação”[8].
Daqui retira a máxima de que quem tem liberdade de agir, deverá ser
responsabilizado pelas consequências da sua atuação. Acrescenta ainda que,
apesar de estar na titularidade uma autorização, cabe ao autorizado
assegurar-se de que no exercício desta não causa quaisquer danos, tendo em
conta o dever fundamental de respeitar o ambiente.
Assim,
a autorização administrativa não deve ser considerada como uma espécie de
garantia de defesa contra todos os danos que possam vir a ser causados pelo seu
titular, devendo este ser responsabilizado pelas suas atuações. Acrescenta-se
ainda o facto de ser a atividade do autorizado a que se encontra numa maior
relação de proximidade em relação aos danos e de ser aquele que retira os
proveitos da atividade danosa.
Isto
não significa que em determinadas situações a Administração não seja a responsável
pelo pagamento da indemnização, sendo no entanto necessário provar no caso
concreto que a emissão de autorização originou um erro desculpável, que leva à
exclusão da culpa. A exclusão da culpa não ocorrerá sempre uma vez que, como
foi referido, sob o autorizado recaem deveres gerais de cuidado no
desenvolvimento da sua atividade. Assim, apenas haverá exclusão quando se prove
que na situação em análise deverá haver uma tutela da confiança. Um exemplo de
exclusão da culpa seria o caso de a própria Administração ter ficado encarregue
de fiscalizar com frequência a atividade e nunca se ter pronunciado sobre os
danos causados aos vizinhos, nem ter determinado que novas medidas de cuidado
deviam ser adotadas. Havendo exclusão da culpa, ao autorizado não pode ser
exigido o pagamento de qualquer retribuição mas também não poderá o lesado não
ser ressarcido, pelo que caberá o pagamento da indemnização à própria
Administração. Esta obrigação de ressarcir é fundada na própria ilicitude da
sua conduta: seja na emissão da autorização, seja na falta de imposição de
medidas de cuidado ou ainda na insuficiente fiscalização da atividade.
A posição da autora surge assim, na
nossa opinião, como o caminho a adoptar. Ao apresentar de forma detalhada as
diversas situações com que nos possamos deparar, ao ter em consideração o conteúdo
do ato em causa e os efeitos por ele abrangidos, Mafalda Carmona apresenta
soluções que permitem resolver o caso em concreto. Fá-lo, no entanto tendo
sempre em consideração os interesses envolvidos, de forma a tutelar a segurança
jurídica de ambas as partes e respeitando os limites impostos pelas normas
constitucionais.
Mariana Prelhaz - 20646
[1]
CANOTILHO, José Gomes. Boletim da Faculdade
de Direito de Coimbra. Vol.LXIX, 1993, p.22.
[2] CARMONA,
Mafalfa. O Acto Administrativo Conformador de Relações de Vizinhança. Lisboa:
Almedina, 2011. P.219
[3] CARMONA,
Mafalfa. O Acto Administrativo Conformador de Relações de Vizinhança. Lisboa:
Almedina, 2011. P.397
[4] CANOTILHO,
José Gomes. Boletim da Faculdade de
Direito de Coimbra. Vol.LXIX, 1993, p.28
[5] CANOTILHO,
José Gomes. Boletim da Faculdade de
Direito de Coimbra. Vol.LXIX, 1993, p.31
[6] CANOTILHO,
José Gomes. Boletim da Faculdade de
Direito de Coimbra. Vol.LXIX, 1993, p.34
[7] CARMONA,
Mafalfa. O Acto Administrativo Conformador de Relações de Vizinhança. Lisboa:
Almedina, 2011. P.305
[8] CARMONA,
Mafalfa. O Acto Administrativo Conformador de Relações de Vizinhança. Lisboa:
Almedina, 2011. P.361
Visto.
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