Como objecto deste post, escolhemos o tema do deferimento tácito. Mais concretamente,
aquele que vem consagrado nos artigos 19º e 21º do Decreto-lei 151-B/2013 de 31
de Outubro (doravante RAIA: Regime da Avaliação de Impacte Ambiental). A razão
desta escolha tem que ver com o facto de esta ser uma figura especialmente
interessante quando inserida no ordenamento jus ambiental. Ou seja, onde tudo
gira em torno do princípio da prevenção, surge um instrumento que vem bulir um pouco com essa lógica, para
fazer crescer o valor da eficácia administrativa numa área, em princípio, nada
propícia a essa conjugação. Face a este ponto de partida, percebemos, pelo
estudo do seu regime, que as perplexidades e os problemas não ficaram por aí e
que há ainda diversas questões a tratar acerca deste mesmo deferimento tácito no RAIA. É o tratamento desses problemas que vai
preencher as curtas páginas deste post,
precedido de uma breve referência ao seu regime legal.
I. O deferimento tácito, no RAIA, surge, naturalmente, na fase da
decisão do procedimento, mais concretamente na sub-fase da emissão da
Declaração de Impacte Ambiental (doravante DIA) – artigo 19º - ou da decisão
sobre a conformidade ambiental do projecto de execução – artigo 21º . Ao mesmo
tempo que se fixa um prazo para a emissão da Dia (100 ou 80, que se podem
reduzir para 30 ou 20 – artigos 19º/2 e 3) ou para a decisão sobre a
conformidade ambiental do projecto de execução (50 dias – artigo 21º/5),
prescreve-se uma consequência jurídica caso exista incumprimento desse prazo[1]: o
acto tácito positivo.
Os casos de avaliação de impacte
transfronteiriça não entram neste rol susceptível de serem tacitamente
deferidos[2],
devido à exclusão operada pelo artigo 19º/6, o que não deixa de ser curioso. Neste
caso, o particular terá de recorrer à Acção Administrativa Especial de
condenação da Administração à prática de acto devido (artigo 4º/11). Ora, como é bom de ver, os perigos de um acto
tácito positivo dentro deste diploma e daquilo que ele regula são muitos (e vão
ser dissecados infra) e a consequência
mais danosa desta falta de ponderação dos perigos ambientais é a aprovação de
um projecto que comporte lesões muito graves para o ambiente , conjugado,
também, com o gasto de tempo e recursos para repor a situação no plano em que
se encontrava antes do deferimento, compensando, talvez, o próprio particular
pela impossibilidade de este ver o seu projecto parado por uma falha da
actuação administrativa ao demitir-se de atentar ao seu pedido. E isso tanto
pode acontecer dentro do nosso país, como podemos ter situações em que os danos
ambientais (ou pelo menos os impactes ambientais) se possam repercutir no
estrangeiro. Aí, como podemos ver, o cuidado do nosso legislador é maior. Tal
como classifica CATARINA PINA[3], trata-se
de uma dupla bitola por parte do nosso legislador. E essa mesma dupla bitola é entendida como um sinal
de hipocrisia por CARLA AMADO GOMES[4], pela
aparente (na nossa leitura da posição da Professora) falta de fundamento atendível
na diferenciação. De facto, poderíamos sempre ver esta dualidade como uma prova
da derradeira inaptidão deste sistema do acto tácito em matéria ambiental,
porque quando se trata de matérias que podem prejudicar Estados terceiros, os
riscos devem ser mínimos e não podemos admitir que, sem ponderação, comecemos a
lesar bens ambientais além fronteiras. Mas não parece ser essa a leitura a
retirar deste fenómeno legislativo. Até porque não faria grande sentido querer
proteger melhor um bem que, apesar de colectivo, se situa fora da jurisdição
portuguesa (realidade ambiental espanhola), a não ser para não criar conflitos
diplomáticos, o que também surge como demasiado especulativo para se constituir
como interpretação credível. O que nos parece que está ali em causa é uma
tentativa de Portugal refugiar-se da
orientação jurídica da União Europeia sobre a figura do deferimento tácito, o
que sai aqui um pouco gorada por manifesta incoerência com a solução para o
plano interno.
II.
Um dos aspectos
deste regime que o torna tão polémico é
o facto de a sua positivação ser uma “rebeldia” face à visão da jurisprudência
europeia sobre a matéria[5]. Do
Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante TJUE) de 14 de
Junho de 2001[6],
retiramos que a interpretação das Directivas[7]
que impõem actos autorizativos a projectos que possam causar danos ambientais,
é, por parte do TJUE, no sentido da não aceitação do deferimento tácito como um
verdadeiro acto autorizativo, capaz de cumprir os fins dessas instrumentos
normativos de resultado. Estava em causa uma acção por incumprimento do Reino
da Bélgica por deficiente transposição das referidas Directivas, por este ter
criado um sistema de actos tácitos negativos e positivos (em 1ª e em 2ª
instância, respectivamente)[8].
O sentido do Acórdão foi
acompanhado pelo Advogado-Geral Jean Mischo, que nas suas conclusões, realçou dois
aspectos muito importantes que resultam das Directivas[9]:
em primeiro lugar, que todas elas têm em comum o facto de precisarem as “condições detalhadas quanto aos dados que
devem constar de tais autorizações”; e, em segundo lugar, que constitui uma
garantia da autoridade competente, de fixar, por meio de diversos estudos, um “determinado número de elementos, antes de
deferir a autorização pedida”. É precisamente através desta leitura que o
Advogado-Geral retira a obrigatoriedade de um acto expresso nesta matéria,
porque, naturalmente, um acto tácito é incapaz de cumprir com estas exigências.
E até mais incapaz será no caso português, em que na “1ª instância” de decisão
se pode já formar deferimento tácito. E de notar é também o seguinte aspecto: é
que o sentido das Directivas (tal como interpretado no referido Acórdão) é o de
apenas proibir os actos tácitos positivos e não os actos tácitos negativos,
porque estes nada fazem aprovar e são incapazes de gerar qualquer tipo de dano
para o ambiente.
III.
Daquilo que
estudamos a Direito do Ambiente, um dos primeiros pensamentos que nos ocorre,
quando olhamos para esta figura, é o seguinte: então mas se está consagrado um
deferimento tácito para a matéria, talvez, mais relevante no ordenamento jus
ambiental, onde fica o tão aclamado princípio da prevenção? Se se permite que
uma DIA (que concerne aos impactes ambientais de um determinado projecto) seja
dada como favorável sem qualquer tipo de ponderação, não violará este regime o
referido princípio? De facto, não obstante o que já vimos ao nível europeu,
aqui trata-se de responder a um problema interno, com os dados jurídicos
nacionais e do nosso sistema jus ambiental. No limite, a resposta passará por
saber se este regime será conforme à Constituição (doravante CRP).
O princípio da prevenção está
previsto no artigo 66º/2/a) da CRP, enquanto tarefa fundamental do Estado.
Sumariamente falando, o princípio tem como finalidade evitar lesões do meio
ambiente, implicando a capacidade (dir-se-á, quiçá, o dever) de antecipação de
situações potencialmente perigosas, de origem natural ou humana, capazes de por
em risco os componentes ambientais, para assim se poder adoptar os devidos
meios de modo a evitar/minorar as suas consequências[10]. A
sua vertente atinente ao evitar dos danos ambientais e de colocação a priori confere-lhe uma especial
pertinência no campo da AIA e da DIA em particular, enquanto mecanismos de
controlo, ex ante, do impacte
ambiental de determinado empreendimento. Juntando a isto a necessidade de
ponderação[11]
a que o referido princípio obriga, ficamos com uma situação delicada, em que é(?)
permitida uma total ausência dessa ponderação, na emissão de um acto que visa
evitar e prevenir eventuais danos para o meio ambiental.
Em nossa opinião, ao admitir-se a
tal ausência de ponderação, esta solução legal vai contra o referido princípio
da prevenção ambiental e, no mínimo, choca de frente com o mesmo, tendo que ocorrer
a devida ponderação de bens e valores para ver qual deles sobressai aqui: se o
da prevenção, se o princípio da eficácia administrativa ao admitir-se a celeridade
procedimental inerente ao acto silente. Ora, aceitar-se dentro de um
ordenamento jurídico que coloca a prevenção como grande mote, um RAIA que permite
um deferimento tácito de uma DIA, era
subverter essa própria caracterização baseada no princípio da prevenção.
Teríamos, necessariamente, de repensar até a própria dogmática jus ambiental,
sob pena de evidente incoerência interna do sistema. Mas se é certo que poderá
ocorrer a tal ausência de ponderação e a consequente insuficiente tutela
ambiental, a verdade é que também nem tudo será tão mau como se poderá pintar. No
que diz respeito às consequências da emissão da DIA, ou melhor, à sua força
jurídica, resulta de forma clara do artigo 22º do RAIA que só a DIA
desfavorável é vinculativa[12]. Face
a isto, o deferimento tácito é
incapaz de gerar essa mesma vinculatividade.
Cabe, portanto, saber também qual
é o papel que poderá caber ao órgão competente para a decisão final do
procedimento[13].
Poderá ele indeferir, como pretende CARLA AMADO GOMES, o pedido de autorização
por falta de ponderação? Em nosso crer, não terá essa competência. Para poder
indeferir o pedido com base nesse fundamento, esse órgão terá necessariamente
de ter a mesma competência ponderativa e, para além disso, ainda se for o mesmo
órgão, que a tenha do ponto de vista temporal, ou seja, que possa, naquele
momento, “mexer”, conformar o acto, com base nessa competência. E isso não
parece acontecer neste caso, porquanto se dá competência para a emissão da DIA
(artigo 19º/1) à autoridade de AIA ou ao membro do Governo responsável pela
área do ambiente, na fase da Secção III do diploma e não a outro órgão noutra
fase procedimental. A única hipótese, e muito remota ela é, talvez apenas
ponderável por tacteantes aspirantes a jus publicistas, seria admitir a
fiscalização administrativa da constitucionalidade das normas nas quais se
basearam os actos de deferimento tácito
ou do próprio acto de deferimento tácito,
desaplicando-os.
IV.
Virando o ângulo
de visão para as possibilidades que cabem aos particulares, há certas formas
que estes, por si, têm para obstar a um indesejado acto tácito positivo. Uma coisa se afigura como certa: os
interessados que se contraponham ao deferimento
tácito, podem sempre lançar mão da Acção Administrativa Especial de Impugnação
de Acto Administrativo, colocando em causa a validade do mesmo. Mas poderão, eventualmente,
cumular este pedido com um outro: o de condenação na efectiva realização do
procedimento de AIA ou o de reconstrução deste nas fases lacunares? Bom,
processualmente poderão fazê-lo, mas onde estará aqui a ilegalidade no comportamento
da Administração? Podemos equacionar a eventual violação dos princípios da
prevenção (a que já aludimos), da participação, ou mesmo da imparcialidade[14]. Mas
mesmo assim não se nos afigura possível haver uma condenação nesse pedido. Ora,
para isso acontecer era necessário que existisse conduta ilegal da
Administração. E, no limite, até podemos admitir que sim, até podemos dizer que
o acto silente positivo é violador daqueles princípios constitucionais. Mas aí,
como a Administração “actua” ao abrigo de uma norma legal, já não é tão fácil
assacar essa ilegalidade à conduta da Administração, do ponto de vista
processual. E porquê? Porque a condenação com esses fundamentos de ilegalidade
implicaria um juízo de inconstitucionalidade por parte do juiz administrativo
em relação a uma norma legal. A questão teria de ser remetida para o Tribunal
Constitucional, a título de fiscalização concreta. Porque tal pronúncia do juiz
administrativo significava uma sobreposição deste em relação ao legislador: o
juiz vai entender que hou violação da Constituição onde o legislador não entendeu,
tendo que se superar a tal presunção de constitucionalidade de que alguns
autores falam.
V. Por fim, sobra este espaço para
se falar de algumas pequenas questões, também interessantes, que nos surgiram
no estudo da figura.
Em primeiro lugar, é de estranhar
a obrigação de notificação constante do artigo 19º/1/in fine[15]. Trata-se
de uma obrigação de notificação de deferimento tácito de DIA, mas que em nada
pode querer significar a necessidade da referida notificação para se operar o
deferimento tácito, sob pena de total incoerência com o regime consagrado no
próprio artigo. Como é natural, neste tipo de casos, em que se exige uma
aturada pronúncia da Administração, não faz sentido que se valore uma
notificação, em jeito de desnecessidade da referida ponderação, alertando para
um eventual acompanhamento da situação. Não, aqui ou se atenta para o pedido e
se dá um acto expresso, ou há uma ausência de actuação administrativa, e não
faz sentido haver notificação, pois nada se espera da Administração[16].
Em segundo lugar, a propósito do
tema da competência para emitir a DIA, discute-se se terá o Ministro do
Ambiente (ao abrigo do artigo 16º/6 e7 e do 19º/1) competência para emitir uma
DIA favorável. Não nos cabe abordar, obviamente, o problema, mas cabe-nos, a
propósito do nosso problema, formular uma questão. Inclinando-se a Autoridade
de AIA para a emissão de uma DIA desfavorável, e remetendo a proposta para o
Ministro do Ambiente, poderá haver deferimento
tácito? Ora, a questão prévia a responder será admitir que a competência
para a emissão de DIAs favoráveis não é um exclusivo da Autoridade de AIA, e
que o Ministro do Ambiente tem, também, essa competência[17]. Partindo
com estes dados, perguntar-se-á: fará sentido impedir o deferimento tácito nestes casos? Parece que não, visto ambos,
Ministro e autoridade de AIA, terem
competência para praticar o acto, embora a competência do primeiro seja “subsidiária”
em relação à segunda. A não ser assim, estar-se-ia a impedir o funcionamento
pleno deste sistema e não encontramos razões ponderosas para o fazer, nem dados
legais que nos permitam retirar outra leitura que não esta. De facto, o artigo
19º/2 não distingue quando apresenta a consequência jurídica do deferimento tácito. No entanto, se não
admitirmos essa competência por parte do Ministro do Ambiente, a questão
torna-se mais espinhosa. Em nossa opinião, é de afastar um eventual indeferimento tácito. Não só porque é
uma figura ultrapassada pelo panorama processual nacional, mas também, e
principalmente, porque o RAIA nada contém que possa fazer retirar essa solução,
sendo preciso referência expressa. Assim, mesmo que não admitamos essa
competência, da leitura do artigo 19º/2 parece ser a de que continua a existir deferimento tácito, porque se fixa,
abstractamente, um prazo e se comina o acto silente positivo pelo seu
incumprimento, não interessando de quem é, no momento, a competência para a sua
emissão.
VI. Concluindo, resta dizer que,
apesar da controvérsia deste mecanismo, a verdade é que os seus efeitos
práticos são mais benéficos do que as críticas que, no plano teórica, lhe podem
ser assacadas. Estatisticamente, os casos de deferimento tácito são muito pouco relevantes, o que permite fazer
decorrer outra conclusão: a dissuasão da Administração a não incumprir o prazo
previsto para a emissão da DIA, sob pena de uma eventual aberração autorizativa
que provoque danos anormais ao meio ambiente.
João Sena
aluno nº20834
[1]
Para além desse
incumprimento é necessário a devida notificação ao particular, como clarifica o
artigo 19º/2. Portanto, clarificam-se as dúvidas, neste ponto, sobre saber se o
deferimento tácito ocorria se nã houvesse notificação, independentemente de ter
havido prática do acto.
[2] Nem os casos em que se pediu a
dispensa de AIA, como aponta TIAGO ANTUNES, Pelos
Caminhos Jurídicos do Ambiente - Verdes Textos I, AAFDL Editora, 2014,
p.584.
[3] MORENO PINA, Catarina, Os
Regimes de Avaliação de Impacte Ambiental e de Avaliação Ambiental Estratégica,
Lisboa, 2011, p.152
[4] AMADO GOMES, Carla, Introdução ao Direito do Ambiente,
AAFDL, 2014, p.157
[5] Sobre o tema vide: FIGUEIREDO
DIAS, José Eduardo, O deferimento tácito
da DIA – mais um repto
à
alteração do regime vigente,
in CEDOUA nº8, 2001.
[7] Directivas 75/442, 76/464, 80/68
e 84/360 e principalmente a Directiva 85/337, que foi a responsável pelo DL
69/2000 de 3 de Maio). Actualmente, esta última Directiva (que já tinha sido
alterada pelas directivas 97/11/CE e 2003/35/CE) foi revogada pela Directiva
codificadora 2011/92/UE, responsável pelo DL 151-b/2013 de 30 de Outubro, o
nosso regime da AIA em vigor.
[8] O que até configura um sistema
menos “gravoso” do que o nosso. Enquanto que na Bélgica (Flandres e Valónia)
caso exista uma ausência total de pronúncia da Administração, a consequência é
o indeferimento tácito, só existindo deferimento tácito na decisão de recurso,
em Portugal, a Administração pode nunca ter olhado para o projecto e, ainda
assim, este recebe um acto tácito de deferimento.
[9] Ainda, está claro, das anteriores
à nova directiva 2011/92/UE.
[10] Assim, PEREIRA DA SILVA, Vasco, Verde Cor de Direito, Almedina, 2003,
p.66.
[11] Vide: AMADO GOMES, Carla, Risco
e Modificação do Acto Autorizativo Concretizador de Deveres de Protecção do
Ambiente, Lisboa 2007 p.667 e ss.
[12] Coloca-se como requisito de
emissão do acto de licenciamento ou de autorização a prévia aprovação de DIA
favorável ou condicionalmente favorável, o que tem a consequência, assacada a
contrario, de que uma DIA desfavorável não permite que se emita um daqueles
dois actos, sendo, portanto, vinculativa.
[13] Para um enquadramento do
problema, vide: AMADO GOMES, Carla, Introdução ao Direito do Ambiente, AAFDL
Editora, 2014, p.158.
[14] Assim: AMADO GOMES, Carla,
Introdução ao Direito do Ambiente, AAFDL Editora, 2014, p.159.
[15] Sobre a questão, vide: TIAGO
ANTUNES, Pelos Caminhos Jurídicos do
Ambiente - Verdes Textos I, AAFDL Editora, 2014, p.583.
[16] Assim: TIAGO ANTUNES, Pelos Caminhos Jurídicos do Ambiente -
Verdes Textos I, AAFDL Editora, 2014, p.583.
[17] O que é, de facto, a leitura que
retiramos do regime.
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