A análise deste post visa responder à questão: qual será a jurisdição competente para
aferir das questões jurídico-ambientais, e sobre as mesmas se pronunciar?
Enquadramento Geral
É sabido que o Homem, devido à evolução social, técnica e
tecnológica, vem, desde há séculos, a interferir, em grande escala, com o meio
ambiente.
Assim, face ao empobrecimento do ambiente que, se foi
verificando (principalmente desde a revolução industrial), sentiu-se, um pouco
por todo o mundo, a necessidade de se regular – efectiva e eficazmente – esse
abusivo e perigoso estado da situação. Urgia (e urge) regulamentar a perigosa
relação travada entre o Homem e a Natureza que o rodeia.
Um dos primeiros passos foi tornar o ambiente uma das
tarefas fundamentais do Estado, consagrando a matéria na Constituição da República
Portuguesa (doravante CRP). O Estado passa, por um lado, a estar negativamente
obrigado a não ofender as condições ambientais e, por outro lado, a estar
positivamente incumbido de desenvolver acções promocionais do ambiente (artigo
9º CRP).
Outro passo foi regular a responsabilidade ambiental. Temos assim,
três vertentes:
- Responsabilidade civil ambiental, para dirimir conflitos
ambientais entre privados.
- Responsabilidade administrativa ambiental, quando se
verifiquem situações de “conflitualidade ambiental” entre a Administração e os
cidadãos, seus administrados, ou entre diferentes órgãos da Administração.
- Responsabilidade penal ambiental, quando estejamos na
presença de situações de tal forma graves que revistam natureza de crime
ambiental.
Com vista a estas três situações distintas põe-se a questão
de saber em que tribunal (ou tribunais) colocar o problema dos diferentes tipos
de responsabilidade.
Conflito de
Jurisdições
Em Portugal há, como sabemos, diferentes categorias de
tribunais e a existência de diferentes jurisdições.
Desde logo a CRP, através do seu artigo 209º assim o indica.
Deste artigo resulta, de forma clara, para além da existência do Tribunal
Constitucional, a existência de tribunais judiciais e de tribunais
administrativos e fiscais.
Dos artigos da CRP, resulta que os tribunais judiciais (que
são os tribunais comuns em matéria cível e criminal) “exercem jurisdição em todas as
áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”: artigo 211º nº 1 da CRP,
artigo 64º CPC e artigo 18º da Lei de
Organização e Fucionamento dos Tribunais Judiciais (doravante LOFTJ). Já aos
tribunais administrativos e fiscais compete, em concreto, “o julgamento de
acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios
emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, tal como podemos
retirar do artigo 1º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
(doravante ETAF).
Quanto às diferentes jurisdições podemos apurar seguinte:
A jurisdição administrativa destina-se “ à revisão da
legalidade de decisões da Administração Publica, como instrumento […] da
composição de litígios emergentes de relações jurídico-administrativas”. (CAUPERS,
JOÃO, 2009, p. 392).
A jurisdição comum, que é competente - por “exclusão de
partes” - em todas as matérias “não atribuídas a outras jurisdição”, está “[…]
encarregada da composição dos conflitos inter-privados de interesses.” (CAUPERS,
JOÃO, 2009, p. 392).
Tribunais competentes
para aferir sobre questões ambientais
Tendo em conta o que se foi expondo até aqui, acreditamos
ser legítimo que nos interroguemos: afinal qual será a jurisdição competente
para se pronunciar sobre questões ambientais –principalmente sobre os danos
ecológicos – que em dada ocasião ocorram?
Neste sentido vejamos:
·
Da leitura,
nomeadamente, do artigo 31º do CPC (entre outros) constata-se que a jurisdição
comum, os tribunais judiciais, são efectivamente competentes para aferir sobre
questões do ambiente.
·
Já da
análise, nomeadamente e entre outros, do artigo 4º do ETAF, designadamente da
sua alínea l), primeira parte, bem como dos artigos 11º e 12º nº 1 da Lei de Acção
Popular (doravante LAP), podemos concluir que a jurisdição administrativa é –
também - competente para aferir sobre as questões do ambiente.
·
O que acaba
de se afirmar nos pontos anteriores é, cremos, validado pelo artigo 45º nº 1 da
Lei de Bases do Ambiente (doravante LBA). Esse mesmo preceito legal afirma o
seguinte: “Sem prejuízo da legitimidade de quem se sinta ameaçado ou tenha sido
lesado nos seus direitos, à actuação perante a jurisdição competente do
correspondente direito à cessação da conduta ameaçadora ou lesiva e à
indemnização pelos danos […]”.
Neste caso, da leitura do artigo 45º nº 1 da LBA, parece
resultar que “será a natureza jurídica subjacente ao litígio que decidirá a
questão da atribuição da jurisdição.” (AMADO GOMES, CARLA, 2010, p. 213).
Portanto, dos pontos referidos acima, podemos concluir que são
competentes, tanto os tribunais da jurisdição comum, como os da jurisdição
administrativa.
Em teoria, esta competência seria determinada consoante a
relação jurídica subjacente ao evento que veio a desencadear a querela.
Contudo, a fronteira entre o que é da competência material
de cada uma das diferentes jurisdições é, muitas vezes, ténue. Como tal,
definir aquela competência acaba por não ser simples, sendo muitas vezes uma
questão problemática.
Um dos problemas derivados da existência da dupla
jurisdição, parece derivar de uma das principais características do direito ao
ambiente: a característica difusa do bem jurídico ambiente.
Assim, podemos constatar que cada um deve, ainda que
individualmente, exercer o seu direito sobre o ambiente, mas sempre tendo em
vista um interesse global, colectiva e altruísta.
Reforçando o que acaba de se afirmar veja-se: “ esses
interesses não são públicos, uma vez que o seu titular não é o Estado, mas
também não podem considerar-se privados, pois não visam a satisfação de
necessidades exclusivas de indivíduos determinados.” (MENEZES LEITÃO, LUIS,
2010, p. 36).
A opinião que acaba de ser exprimida serve para impedir que
se possa qualificar o ambiente como “bem público”. Tal vem, pensamos nós,
obstar a que tendencialmente se atribua, como regra, competência à jurisdição
administrativa para dirimir os litígios emergentes de questões ambientais.
Vejamos o que, quanto à competência da jurisdição administrativa,
determina o artigo 4º l) do ETAF na sua parte final: Depois de atribuir
competência geral à jurisdição administrativa para aferir de várias matérias
(entre elas o ambiente), vem, na sua parte final, afirmar que essa competência
se verifica “apenas” quando às infracções (ou ameaças das mesmas) sejam
cometidas por entidades públicas e, desde que não constituam crime ou
contra-ordenação. Daqui podemos retirar duas conclusões:
a) No caso de
as infracções constituírem crime ou contra-ordenação os tribunais competentes
são os tribunais comuns (judiciais).
b) Se a
Administração lesada por via de um qualquer dano ambiental perpetrado por um
particular, deverá peticionar a reparação daquele mesmo dano junto dos
tribunais comuns.
Criação de Tribunais
Ambientais
Depois de apresentada a questão do conflito de jurisdições,
podemos rapidamente concluir que este facto pode ser prejudicial para o
ambiente.
Imagine-se que é
intentada uma certa acção num tribunal judicial, este considera-se
materialmente incompetente, declarando como competente um tribunal administrativo,
depois disso são interpostos recursos, tendo por fim, de ser resolvida a
questão pelo Tribunal de Conflitos (Acórdão do Tribunal de Conflitos de 04 de
Maio de 2000).
Ora, sabemos que entre conflitos de competência pode
decorrer um lapso temporal considerável. Lapso esse que será determinante em
questões ambientais, uma vez estarmos perante um bem jurídico vulnerável, em
que o tempo é precioso.
Pela questão fulcral do conflito de jurisdições e o perigo
que tal facto representa para o ambiente defendemos a criação de tribunais de
competência especializada em matéria ambiental.
Tais tribunais deverão, cremos, ser criados dentro da
jurisdição comum (a exemplo aliás do que foi feito, entre outros, com os tribunais
marítimos – artigo 90º LOFTJ).
Estes tribunais, atenta a grande especificidade e
abrangência das matérias jurídico-ambientais, deverão ser compostos por
magistrados especialmente formados para o efeito, passando a ter competência
para tratar sobre todas questões ambientais, anteriormente tratadas em sede dos
tribunais administrativos ou dos tribunais comuns.
Do quadro de competências dos tribunais ambientais, estariam
excluídas, naturalmente, todas as questões ligadas ao crime ambiental,
permanecendo estas sob a competência dos tribunais criminais.
A criação dos supra aludidos tribunais ambientais,
apresentaria diversas vantagens,entre as quais:
a) Concentração
das decisões sobre diferentes questões ambientais, antes dispersas por diversos
foros, num único foro.
b) Dada a
necessária formação especifica dos magistrados titulares de funções nestes
tribunais, haveria, necessariamente, uma inequívoca melhoria nas decisões que
estes viessem a proferir sobre as questões que lhes fossem sujeitas.
c) Uma vez que
todas as questões jurídico-ambientais passariam a ser tratadas neste tribunal
especializado, libertar-se-iam quer os tribunais administrativos, quer os
tribunais judiciais, para avaliarem as disciplinas jurídicas do seu integral domínio
e inequívoca competência.
d) A soma das vantagens
apresentadas, leva-nos a indicar uma derradeira vantagem. Assim, considerando
que – quer a nível ambiental, quer a nível geral - haveria uma justiça mais
célere, considerando ainda que também haveria uma formação especializada dos
magistrados destes tribunais e considerando, por último, que esta formação específica
conduziria a uma, necessariamente, maior sensibilização ambiental por parte
daqueles mesmos magistrados, acreditamos que melhor se concretizaria o
princípio da tutela jurisdicional efectiva (previsto, por exemplo, no artigo
20º nº 4 da CRP).
Tal facto
verificar-se-ia porque, para além da maior rapidez com que seriam proferidas as
decisões judiciais, também se iriam verificar melhores decisões (porque
proferidas com muito maior grau de conhecimento e especialização) judiciais em
matéria ambiental.
Contudo, não deixamos de estar cientes de que tal medida –
criação de tribunais ambientais – é uma proposta ambiciosa, que teria inegáveis
custos, uma dificuldade acrescida devido à actual conjuntura económica e
financeira, e que teria ainda de ser elaborado um competente código de processo
da matéria, o qual seria um processo moroso. Ainda assim, acreditamos que o
ambiente é o nosso suporte básico de vida, e que sem um ambiente são e equilibrado,
nenhuma outra actividade poderá ser – a médio prazo - levada a cabo. Logo,
esta, deveria ser uma questão (no mínimo) a ponderar.
Nos dias que correm, é globalmente aceite a imensa urgência
de defesa do ambiente. Parece ser pacífico afirmar que, caso nada se faça em
defesa do bem jurídico ambiente, é a própria preservação da espécie Humana que
estará em causa. Se assim é, o que aqui está verdadeiramente em causa é a
solidariedade inter-geracional, que é vital e deve ser atingida a todo o custo.
Assim, levando em consideração tudo quanto até aqui foi expresso,a proposta da criação de tribunais de competência
especializada em matéria ambiental, constituídos por magistrados especialmente
formados, será uma vantagem para o ambiente em que vivemos e consequentemente,
para a espécie Humana.
Pelos motivos expostos, a mencionada proposta permitiria melhorar
o actual estado de situação a nível jurídico-ambiental, sendo de registar um
consequente progresso em tão importante domínio.
Maria Catarina Sampaio Soares
Nº 20503
Bibliografia:
CAUPERS, João (2009) – Introdução
ao direito administrativo. 10ª ed. Lisboa: Âncora Editora.
CRUZ, Branca Martins da (2008) - Desenvolvimento sustentável
e responsabilidade ambiental. Lusíada. Direito e Ambiente. Lisboa
GOMES, Carla Amado
(2010) – “Não pergunte o que o ambiente pode fazer por si; pergunte-se o que
pode fazer pelo ambiente!” Reflexões breves sobre a acção pública e a acção
popular na defesa do ambiente. - Textos dispersos de direito do ambiente.
Lisboa : AAFDL, 2010.
LEITÃO, Luís Manuel
Teles de Menezes (2010) - A responsabilidade civil por danos causados ao
ambiente. In COLÓQUIO “A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO AMBIENTAL”, Lisboa, 2009
- A responsabilidade civil por dano ambiental: actas do colóquio. Coord.
Carla Amado Gomes e Tiago Antunes. Lisboa: Instituto de Ciências
Jurídico-Políticas.
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